domingo, 26 de setembro de 2010

A falácia do espantalho

O caminho da perfeição é um canal estreito e tem escolhos, obriga à rejeição do fácil e do expectável, portanto uma luta constante contra o pecado e o vício.
O caminho da perfeição é solitário, sempre daremos conta de que a maioria das pessoas são infinitamente idiotas e por tal não oferecem benefício.
Percorrer o caminho da perfeição dificilmente assegura um reconhecimento de mérito ou outro qualquer, tendo em conta ser verdade que raramente o sucesso depende da sabedoria ou da inteligência.
Porém, para garantir o sucesso neste mundo não basta ser estúpido, há que percorrer alguns caminhos e promover aquilo que por si só tem pouco ou nenhum valor. A chave do sucesso está na promoção, não importa de quê e pouco importa como.
“Abominável coisa é o bom êxito, seja dito de passagem. A sua falsa parecença com o merecimento ilude os homens. Para o vulgo, o bom sucesso equivale à supremacia. A vítima dos logros do triunfo, desse menecma da habilidade, é a história. Só Tácito e Juvenal se lhe opõem. Existe na época e sente uma filosofia quase oficial, que envergou a libré do bom êxito e lhe faz o serviço da antecâmara. Fazei por serdes bem sucedido, é a teoria. Prosperidade supõe capacidade. Ganhai na lotaria, sereis um homem hábil. Quem triunfa é venerado. Nascei bem-fadado, não queirais mais nada. Tende fortuna, que o resto por si virá; sede feliz, julgar-vos-ão grande. Se pusermos de parte as cinco ou seis excepções imensas que fazem o esplendor de um século, a admiração contemporânea é apenas miopia. Duradora é ouro. Pouco importa que não sejais ninguém, contanto que consigais alguma coisa. O vulgo é um narciso velho, que se idolatra a si próprio e aplaude o vulgar. A faculdade sublime de ser Moisés, Esquilo, Dante, Miguel Ângelo ou Napoleão, decreta-a a multidão indistintamente e por unanimidade a quem atinge o alvo que se propôs, seja no que for. Que um tabelião se transforme em deputado; que um falso Corneille componha Tiridates; que um eununco chegue a possuir um harém; que um Prudhomme militar ganhe por casualidade a batalha decisiva de uma época; que um boticário invente solas de papelão para o exército de Samba e Mosa, e, vendendo-as por couro, consiga arranjar uma fortuna de quatrocentos mil francos de rendimento; que qualquer pobretão case com a usura e a faça parir sete ou oito milhões, de que ele é pai e ela mãe; que qualquer pregador arranje a ser bispo, à força de falar pelo nariz; que o mordomo de qualquer casa grande saia dela tão rico, que obtenha a pasta das Finanças, os homens chamam a isso Génio, do mesmo modo que chamam Beleza à cara de Mousqueton e Majestade à aparência de Cláudio. Confundem com as constelações do abismo as estrelas que os gansos imprimem com as patas na superfície mole do lodaçal.”
A falácia do sucesso, Victor Hugo in Les Misérables, 1862.
Segundo o escritor francês “tudo o que está morto como facto, continua vivo como ensino”, todavia a realidade dramática do presente é a ignorância do passado, do saber a história. Por ser assim, sempre que o futuro se torna presente, emerge o bestial espanto dos brutos, uma espécie de voraz neofobia em que tudo parece incerto.
A principal socorrência dos estúpidos com írrito sucesso é a fé em milagres (onde a hipotética solução é transcendental tal qual uma sentença sem considerandos) ou o simples seguidismo a filosofias alheias.
Se por um lado nunca alguém se tornou mais sábio por conservar no pensamento todas as filosofias humanas (do mesmo modo que ninguém se tornou mais saudável por tomar todos os remédios de uma farmácia), por outro lado e tal como referido, o sucesso raramente depende da sabedoria ou da inteligência.