quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Calendários

O calendário mais antigo que se conhece é o egípcio que tinha 365 dias, 12 meses de 30 dias e 5 dias de festivais. Os egípcios começavam a contar os anos a partir de uma data em que a estrela Sirius nasceu no mesmo sítio que o Sol. Mas muitos dos primeiros calendários usados eram baseados nas fases da Lua e não tentavam manter-se em sincronismo com o ano solar.
Os calendários chinês e islâmico actuais regem-se ainda pela Lua (o Ano Novo chinês ocorre geralmente na segunda lua nova depois do solstício do inverno). E a data do dia de Páscoa ainda é hoje determinada com base no ano lunar: é o primeiro Domingo depois da primeira lua cheia de cada Primavera!
Mas, como um mês lunar tem uma duração média de 29,5306 dias, um ano de 12 meses lunares corresponde a 354,3672 dias (de 24 horas). Como a Terra completa o seu movimento de translação em volta do Sol em 365,24219 dias (o chamado ano tropical), o ano lunar é 11 dias mais curto do que o ano «astronómico».
Um calendário é do tipo lunar ou solar conforme privilegia a aproximação da duração de um mês à lunação ou da duração do ano ao ano tropical.
A divisão do dia
Na Babilónia, utilizava-se um sistema numérico com 60 números. E os babilónios dividiam o dia em 12 horas, porque 60 a dividir por 12 dá resto zero. Para além disso, o número 12 é também um número especial porque corresponde aproximadamente ao número de meses lunares de um ano solar. No Egipto, já se dividia o dia em 24 horas. A divisão das horas em 60 minutos e dos minutos em 60 segundos veio mais tarde, mas a escolha do número 60 remonta à Babilónia. E é possível que o facto de haver cerca de 60 batimentos cardíacos por minuto tenha ajudado a confirmar a «validez» do sistema escolhido.
Note que num sistema numérico com 60 números se podem usar facilmente as mãos para contar. Para indicar um número até 12, o polegar da mão direita pode ser pousado numa das falanges dos outros dedos. E, como cada dedo tem 3 falanges, o total dos 4 dedos corresponde a 12. Quando se termina uma dúzia, estende-se um dos dedos da mão esquerda. Como há 5 dedos: 5x12=60.
O calendário metónico
O calendário grego (calendário metónico) era lunar. Baseava-se nas observações de Meton de Atenas (440 AC) que mostrou que 235 meses lunares - o chamado ciclo metónico- (de 6939,691 dias) somavam quase exactamente 19 anos solares (6939,60161 dias, 228 meses). Por isso, para manter o sincronismo exacto com o ano solar, bastava adicionar 7 meses lunares extra (nos anos 3, 5, 8, 11, 13, 16 e 19 do ciclo).
Calendários Romanos antigos e a origem da palavra calendário
No calendário da Roma antiga, os meses correspondiam exactamente às lunações. Quando um pontífice observava o primeiro crescente fino da Lua, anunciava publicamente (em latim, calare) que o novo mês tinha começado. E assim, ao primeiro dia do mês chamava-se Kalendae (Calendas). E a palavra calendário tem aí a sua origem. Os meses estavam divididos em 3 secções que acabavam, cada uma delas, no dia em que ocorria uma das 3 primeiras fases da Lua: lua nova (Calendas), quarto crescente (Nones - o «nono» dia antes da lua cheia) e lua cheia (Ides). Os nomes das 3 secções eram exactamente: Calendas (fase desde a lua cheia até à lua nova), Nones (fase antes de cada quarto crescente) e Ides (fase antes de cada lua cheia).
Quando o pontífice anunciava o novo mês, anunciava também o número de dias que faltavam para o quarto crescente. Se anunciasse o número 6 do mês de Março, o dia seguinte ao de Calendas era referido como o 6º dia antes (ante diem) de Nones: a.d.VI.Non.Mar. O 2º dia antes de Nones (ou de Ides ou Calendas) era designado por Pridie («a noite antes», em latim). Ou seja, a sequência em Março seria, por exemplo: Calendas, VI, V, IV, III, Pridie, Nones. Ides seria o 15º dia desse mês (a sequência de dias seria: Nones, VIII ( a.d. VIII Id. Mar.), VII, VI, V, IV, III, Pridie, Ides).
O dia de lua cheia, Ides (palavra que vem do Etrusco para «dividir»), dividia cada mês em duas partes iguais e era dedicado a Júpiter. A próxima lua nova ocorria 15 a 17 dias depois (a sequência de dias seria, por exemplo: Ides, XVII, XVI, ..., III, Pridie, Calendas).
A partir do século V a.C. os meses deixaram de estar associados ao ciclo lunar e passaram a ter um número de dias fixo. Ides passou a ser o 15º dia dos meses com 31 dias (Março, Maio, Julho e Outubro) e o 13º dos outros meses. Nones passou a ser o 7º ou 5º dia. A secção das Calendas passou a ter de 16 a 19 dias, a de Nones 4 ou 6 e a de Ides, como antes, de 8 dias.
O calendário começava no equinócio vernal e tinha um total de 304 dias, agrupados em 10 meses: Martius (de Marte, o deus da guerra), Aprilis (de Abrir) , Maius (de Maia, deusa da primavera e do crescimento, filha de Fauno e mulher de Vulcano), Junius (de Juno, deusa da sabedoria e do casamento, ou, segundo outros autores, de L. Junius Brutus, primeiro consul de Roma) , Quintilis, Sextilis; seguiam-se os meses de September (o 7º mês), October (o 8º mês), November (9º) e December (10º)). Aos 304 dias seguia-se, no inverno, um período com dias não numerados que só mais tarde (715-673 AC) foi transformado nos meses de Februarus (mês da purificação) e Januarus (de Janus, deus das entradas e começos, que tinha 2 cabeças - os consuls entravam em função no dia 1º de Janeiro) e o ano ficou com 354 ou 355 dias. Só em 450 AC, o mês de Janeiro passou para a sua posição actual, antes de Fevereiro.
Februarus, o último mês do ano, era o mês da purificação, durante o qual se afugentavam os maus espíritos do Inverno. Tudo tinha que ser tirado de casa, limpo e lavado, para afastar as influências do frio e escuridão invernais e para que as pessoas iniciassem «limpas» o novo ano. Era no fim do mês de Februarus que se celebrava o início da Primavera. O acontecimento durava 3 dias, como hoje o Carnaval.
Calendário Juliano e a origem do nome «ano bissexto»
O calendário Juliano - resultante da reforma do calendário romano por Júlio César - foi introduzido no mundo ocidental no ano 708 da fundação de Roma (46 A.C.).
Cada calendário tem necessidade de uma origem a partir da qual contar os anos. Essa origem define uma Era. No seu uso moderno, o calendário Juliano não se utiliza com a Era da Fundação de Roma mas sim com a Era cristã, que começou em 25 de Dezembro do ano 753 da fundação de Roma (embora o começo do ano tenha sido a 1 de Janeiro, em concordância com o calendário da época). Usando a era cristã, o ano 708 da fundação de Roma, foi o ano 46 A.C.
O uso da era cristã foi introduzido em 532 nos textos e documentos litúrgicos sob a forma da expressão "Anno Domini" (A.D.). Só passados vários séculos se tornou corrente na sociedade. Só desde finais do século XVIII ou princípio de XIX se usa contar os anos a partir da suposta data do nascimento de Cristo: A.C e D.C. Note-se, no entanto, que na Bíblia se diz que Jesus estava vivo no tempo de Herodes e, como este morreu no ano 4 AC, Jesus teria de facto de ter nascido «Antes de Cristo».
Provavelmente porque o conceito de zero ainda não era usado extensivamente na Europa, este método de datação omite o ano zero (o ano 1 A.C. é seguido do ano 1 D.C.). Os astrónomos utilizam uma notação algébrica: chamam Ano 0 ao Ano 1 A.C. e contam negativamente os anos anteriores (por exemplo, o Ano -5 corresponde ao ano 6. A.C.). Deste modo o cálculo do número de anos separando duas datas pode sempre fazer-se algebricamente.
É um calendário estritamente solar, em que cada ano tem 365 dias, acrescentando-se um dia extra (o dia bissextus) de 4 em 4 anos. Os meses de Quintilis e Sextilis passaram a ser os meses de Julius e Augustus, ou seja, os meses dos imperadores Julius Caesar e Augustus Caesar. No calendário anterior, os meses de 31 e 30 dias alternavam-se, retirando-se nos anos bissextos um dia a Februarus, que passava a ter 29 dias. Quintilis tinha 31 dias e Sextilis 30. Para que nenhum dos imperadores tivesse menos honras, os novos meses ficaram ambos com 31 dias. Isto obrigou a retirar um dia a Februarus e a alterar os dias dos meses seguintes a Augustus de modo a que não existissem 3 meses seguidos com 31 dias.
O ano Juliano médio era portanto de 365,25 dias, um número não muito diferente do ano real. Foi usado extensivamente até ao século XVI mas, como a sua duração é ligeiramente maior do que a do ano real (mais 0,0078 dias, ou seja, uns 11 minutos), a data dos equinócios foi mudando, adiantando-se uns 8 dias por cada 100 anos.
Ainda hoje, em português, se chama ao ano em que se introduz um dia intercalar «ano bissexto». Esta designação vem do latim annus bissextilis , que significa «ano com dois sextos dias». Refere-se a dois sextos dias sucessivos antes das Calendas de Março - a.d.VI.Kal.Mar. Ou seja a dois dias 24 de Fevereiro (a sequência de dias seria: ...,VI (24), VI (24), V (25), IV (26), III (27), Pridie (28), Calendas de Março (1) ).
O calendário juliano ainda é usado nos dias de hoje para determinar os feriados religiosos ortodoxos.
Para as datas mais antigas, os historiadores utilizam o calendário juliano. Mesmo quando as datas são anteriores à sua criação (45 AC), utilizam um calendário «virtual» prolongando o calendário juliano para o passado, mantendo as mesmas regras da sua construção.
Calendário Gregoriano - o nosso calendário actual
Em 1582, quando as datas dos equinócios já se tinham adiantado uns 12 dias em relação às datas do tempo em que o calendário Juliano foi introduzido, o Papa Gregório XIII decretou que a data de 11 de Março em que se estava a dar o equinócio da Primavera devia ser convertida em 21 de Março, que era a data do equinócio vernal no tempo do Concílio de Niceia, que tinha ocorrido em 325 DC. O único modo de o fazer era passar 10 dias à frente; e foi o que aconteceu nos países católicos de França, Espanha, Portugal e Itália: o dia seguinte ao dia 4 de Outubro de 1582 foi o dia 15 de Outubro de 1582.
Em vários outros países católicos a mudança só se deu um ou dois anos mais tarde (Bélgica, Holanda, Suíça e várias regiões católicas da Alemanha, ainda não unificada) e 5 anos mais tarde na Hungria. O resto da Europa só mudou de calendário mais de um século mais tarde. Na Alemanha protestante a reforma gregoriana só foi adoptada em 1700. Na Inglaterra a alteração só se deu quase 200 anos mais tarde, em 1752 (o dia 2 de Setembro foi seguido pelo dia 14). A Suécia mudou só em 1753 e a Rússia apenas em 1918 (é por isso que a chamada Revolução de Outubro se deu em Setembro) embora, de facto, o calendário russo tenha uma regra adicional para determinar os anos bissextos que o torna mais preciso e daqui a uns milhares de anos ficará dessincronizado com o gregoriano. (O calendário iraniano também é uma versão melhorada do gregoriano).
No calendário Gregoriano, que é o que ainda usamos hoje, suprimiram-se 3 anos bissextos em cada 400 anos. Os anos divisíveis por 100 que não são divisíveis por 400 deixaram de ser anos bissextos. Ou seja, cada ano tem 365 dias, acrescentando-se um dia extra de 4 em 4 anos, excepto nos anos divisíveis por 100 que não são divisíveis por 400. (O ano A é bissexto se A é múltiplo de 4 e não é múltiplo de 100 ou se A é múltiplo de 400. Os anos 1800, 1900 e 2100 não têm dia 29 de Fevereiro, mas 2000 e 2400 têm.) O ano Gregoriano tem 365.2425 dias, diferindo apenas em 0,0003 dias do ano «astronómico», atrasando-se só um dia em cada 3000 anos.
NOTA:
No Excel para os sistemas operativos Windows, a Microsoft decidiu exprimir as datas pelo número de dias desde a meia-noite de 1 de Janeiro de 1900. Só que na Microsoft se esqueceram que 1900 não é um ano bissexto no calendário gregoriano! Se seleccionarmos o formato de uma célula para datas e escrevermos o número 60, aparece o dia 29 de Fevereiro de 1900, que não existiu. Como consequência disso, os números das datas que se lhe seguem estão errados e é preciso ter cuidado com as contas que se façam com eles. Felizmente, só 1900 ficou afectado. No Excel para os Macintosh, a Microsoft decidiu exprimir as datas pelo número de segundos desde a meia-noite de 1 de Janeiro de 1904!
A Revolução Francesa
Em França, de 1793 a 1805, durante a Revolução Francesa, foi adoptado um calendário Revolucionário - começando no 1º dia do mês de Vendémiaire do Ano 1 da República (a data gregoriana de 22 de Setembro de 1792 - dia do equinócio do Outono e data da fundação da Primeira República).
Tinha 12 meses de 30 dias cada um, mais 5 ou 6 dias complementares (os sansculottides), dependendo da data do equinócio do Outono. O ano começava sempre no dia do equinócio do Outono; o calendário mantinha-se alinhado com as estações mas os anos bissextos (chamados de anos «sextiles» em vez de «bissextiles») não ocorriam segundo um padrão regular. Os meses do outono chamavam-se Vendémiaire, Brumaire e Frimaire; os meses de inverno, Nivôse, Pluviôse e Ventôse; os meses da primavera, Germinal, Floreal e Prairial; e os meses de verão, Messidor, Thermidor e Fructidor.
Cada mês tinha 3 semanas (décades) de 10 dias cada. Os nomes dos dias na «décade» traduziam o seu número na sequência dos dez dias (Primidi, Duodi,Tridi,Quartidi,Quintidi, Sextidi,Septidi,Octidi, Nonidi, Décadi). Os nomes dos 5 ou 6 dias extra comemoravam aspectos do espírito revolucionário (de la Vertu, du Génie, du Travail, de l'Opinion, des Récompenses, de la Révolution) . O dia da Revolução era o último dia, o 6º, que ocorria só nos anos com 366 dias.
Em vez de um dia em cada 7 para irem à igreja, os franceses passaram a ter o último dia em cada 10 (o décadi) para irem aos «templos da razão» - o novo nome para as igrejas. Os dias eram divididos em 10 horas de 100 minutos, de 100 segundos cada (100000 segundos por dia).
A definição deste calendário continha uma contradição: o ano começava no dia do equinócio do Outono e o ano sextil devia ser intercalado de 4 em 4 anos. No ano 19 surgiria a primeira contradição. Foi um dos argumentos utilizados para o regresso ao calendário gregoriano, que ocorreu em 1 de Janeiro de 1806 (11 Nivôse do ano 14).
Nota:
O sistema métrico, que utilizamos hoje, foi criado nessa altura, com o mesmo espírito racionalizador. Foi nessa altura que se criou o metro e o quilograma. A Data Juliana A data Juliana enumera simplesmente o número de dias que decorreram desde o começo da era Juliana - o meio-dia de 1 de Janeiro de 4713 A.C. - no calendário juliano (ou -4712 em notação astronómica). É um modo de datação conveniente para os astrónomos porque todas as observações astronómicas históricas correspondem a um dia com um número positivo e os períodos podem ser determinados por simples adição ou subtracção, sem que existam descontinuidades; o facto de cada dia começar ao meio-dia é conveniente para que a data não mude durante uma noite de observações astronómicas. A data Juliana é uma base comum conveniente a partir da qual se pode fazer a conversão para a data de qualquer calendário.
Se, por exemplo, quisermos saber quantos dias decorreram entre o dia 1 de Janeiro 1001 às 0h, no calendário juliano, e o dia 1 de Janeiro 2001 às 0h, no calendário gregoriano, basta-nos subtrair o valor correspondente das datas julianas : 2451910,5 - 2086673,5 = 365237 dias.
Foi o astrónomo Julian Scalinger que introduziu o sistema das datas Julianas, em 1583. Scalinger definiu o Dia Um como o dia 1 de janeiro de 4713 AC do calendário Juliano, que é um dia em que 3 ciclos importantes convergem.
O 1º ciclo era o período de 28 anos em que o calendário Juliano se repete (Bastava ter 28 calendários. Ao fim de 28 anos as datas cairiam nos mesmos dias da semana. No calendário gregoriano isso só acontece ao fim de 400 anos).
O 2º ciclo era o ciclo metónico de 19 anos, ao fim do qual as fases da lua caiem quase nos mesmos dias do ano.
O 3º ciclo era o antigo ciclo de 15 anos dos impostos romanos.
Todas as datas subsequentes são sequenciais. A meia-noite antes do dia 1 de Janeiro de 2001 foi a data juliana 2451910,5 e a meia-noite antes do dia 1 de Janeiro de 2002 foi a data juliana 2452275,5.
Muitas vezes, como no caso da especificação da época nas tabelas dos elementos orbitais de satélites artificiais, usa-se o Dia Juliano Modificado que corresponde a subtrair 2400000,5 do número do dia Juliano. Deste modo, o número da data é menor. Representa o número de dias que decorreram desde a meia-noite de 17 de Novembro de 1858 (UT- Tempo Universal).
Outros calendários:
O calendário islâmico
O calendário judeu
O calendário persa - o calendário solar mais preciso da actualidade
O calendário civil indiano
O calendário copta
Os calendários Maia
Notas:
O ano de 1989 (gregoriano) corresponde ao ano 4626 chinês, ao ano de 2649 japonês, ao ano de 1410 islâmico, ao ano de 5750 judeu.
Chama-se lua azul à segunda Lua Cheia dentro do mesmo mês (gregoriano).
O autor expressa agradecimento a A. João Soares, autor do blogue "Sempre Jovens" pela cedência de conteúdo para este artigo.
As cinco primeiras imagens apresentadas, bem como as cinco últimas, não são propriedade do autor.

Gabela

O que mais o preocupava no retorno ao Waco Kungo (antiga Santa Comba, Cela) era o tempo, havia saído do Sumbe (antigo Novo redondo) já depois do meio-dia e provavelmente ao passar Quibala a noite cairía, naquele súbito muito próprio de Angola. Esses últimos 75 quilómetros ofereciam mais perigo, que os assaltos à mão armada eram prováveis à passagem pelas pontes metálicas provisórias ou então junto às grandes crateras provocadas pelas minas onde jaziam carcaças de blindados e o desvio cuidadoso pelas bermas era a única opção (passar pelas pontes com o Land Rover era sempre um serviço lento e de grande perícia tendo em conta que nem todas as chapas de revestimento do pavimento bem como respectivas travessas restavam).
Todavia a parte do percurso que mais o aborrecia, pese ser também a mais interessante em termos de paisagem, eram aqueles quilómetros antes e depois de passar Gabela, por razões distintas, a ver com a imensa quantidade de animais a evitar atropelo, e pelo estado muito pior das estradas em zona montanhosa, que as águas de chuva sulcam laivos profundos no terreno onde não convinha enfiar as rodas em riscos de capotar.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O silêncio

Sim, foi por mim que gritei, declamei, atirei frases em volta, cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz, a carvão, a sangue, a giz, sátiras e epigramas nas paredes que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi que nada me dariam do infinito que pedi, que ergui mais alto o meu grito e pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas, eis a razão das épi trági-cómicas empresas que, sem rumo, levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava era, como qualquer, ter o que desejava, febres de mais, ânsias de altura e abismo, tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado sair deste meu ser formal e condenado, erigi contra os céus o meu imenso engano de tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio! Nu a teus pés, abro o meu seio, procurei fugir de mim, mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou, sofro por este chão que aos pés se me pegou, sofro por não poder fugir, sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação! Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição... Senhor dá-me o poder de estar calado, quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei, nunca os usei nem usarei, se nada do que levo a efeito vale, que eu me não mova! que eu não fale! Ah! também sei que, trabalhando só por mim, era por um de nós.
E assim, neste meu vão assalto a nem sei que felicidade, lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior do que a própria imensa dor de compreender como é egoísta a minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros, e o meu silêncio, como incenso, atingir-te-á, e sobre mim de novo descerá... sim, descerá da tua mão compadecida, meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome saciarão a minha fome.
Adaptação do autor sobre a poesia de José Régio.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

O Boxster e o P601 de James Stuart

O Porsche 986 2.5 Tiptronic azul escuro tomou o lugar, no espaço da garagem entenda-se, ao "mano" Trabant hycomat... também azul, também automático, também alemão, mas com menos 176 cavalos de potência.

O primeiro atinge em pouco mais de 7 segundos os 100 km/h e às 6000 r.p.m., os 240 km/h. O segundo atinge às vezes os 100 km/h em 70 segundos e no dia em que o seu motor a 2 tempos atingir as 6000 r.p.m. quer dizer que já ardeu.

Se o Boxster ganhou de imediato direitos à circulação nas avenidas da capital, o P601 foi forçado ao exílio junto ao Balaton, onde somente aos finais de semana, quando é possível, circula numa invejável e mais vaidosa operacionalidade.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Tantos apelidos...

Era de madrugada… acordou com os primeiros raios de sol que desenhavam umas riscas mais brancas na parede da cabeceira do leito, efeito de lâminas inclinadas das portadas verdes de alumínio que protegem o acesso à varanda. Acendeu a televisão em busca das notícias vespertinas. Entendeu pelas primeiras palavras do locutor... que era um “caro tele-espectador”.
Arranjou-se, saiu com preparos para um dia de praia. Ao dirigir-se à garagem ainda leu um papel afixado no átrio do edifício que rezava: “Aos Exmos. condóminos - Avisam-se todos os moradores do edifício de que...”. Enquanto lia cruzou por detrás um vulto que disse “bom dia vizinho!”. Seguiu.
A caminho liga o auto-rádio e aparecem umas vozes que tratam de um jogo de uma mala e etc, apelando ao “caro ouvinte” que contacte o programa para "tentar a sua sorte de concorrente na resposta certa...". No telemóvel aparecia uma mensagem gravada: “estimado cliente, o saldo do seu cartão...”. Parou frente a uma caixa multibanco e recarregou o dito. Após três tentativas, uma menina informa que "para ser um participante, tem que responder a um questionário prévio...” Desistiu.
No preciso momento de desconexão da comunicação telefónica, um carro patrulha da PSP encosta rente ao retrovisor, onde um agente, a esforço baixa o vidro manualmente enquanto cómodamente e simultâneamente em frente vê premido o botão para arriar a homóloga janela, eléctrica. Feitas as apresentações e entregues os cumprimentos, é informado gentilmente para não movimentar a viatura e dar acesso aos documentos. “E não sei quê, e tal... o senhor estacionou o automóvel na passagem de peões, precisamente em arruamento onde é proibido parar ou estacionar...”. Sem diâmetro para escapar desta ainda engoliu os seguintes apelidos “infractor ao código da estrada”... “incumpridor da lei”. Aceitou, que remédio, levou o talão verde enquanto lhe informaram que o prazo para pagamento do montante era de quinze dias, mais do que isso seria "considerado devedor". No ir e não ir, avançou por ultrapassagem os agentes da autoridade, sem se aperceber cruzando um semáforo vermelho. Assim, escuta uma sirene e uma chiadeira de pneus que logo bloqueiam no seu pára-choques. Passou a “automobilista de tudo o mais... e irresponsável”, “abusador de delito”, chegou mesmo a ouvir ser constituído “arguido” por ofensa grave a não sei quê, onde foi ordenado como “detido” que passaria num ápice a “réu”... mas valeu-lhe o colega do agente que perfilava esse monólogo incendiado, levando o assunto a menores instâncias, com solução dada pela emissão de outro talão verde e um mero teste do balão, para verificar se “o condutor compreende um eventual delito conjunto de alcoólico”. Nada, felizmente, pese o facto de ter sido convidado a abandonar a viatura por incorporar uma situação consequente de “faltoso muito grave”. Após longa prosa lá foi, cuidando de nada inventar que não fosse verdade enquanto inocente que falhou por distracção e nada mais que outros humanos não saibam.
Decidiu-se pelo melhor, estacionar o veículo e passar a peão para encontrar um autocarro que o dia não estava para mais. O bilhete comprado ao motorista dizia em pequenas letrinhas as condições do utente, pelo que na qualidade de passageiro cumpriu, obliterando.
Uma hora mais tarde e de toalha às costas caminhou pelo areal e instalou-se. A bandeirola estava verde junto à armação de madeira que continha avisos ao banhista que sendo utilizador da zona concessionada tem regras a cumprir segundo decretos estes e aqueles, e tal, mas com vantagens de ser socorrido em caso de ser detectado como náufrago. Momentos depois passa a menina das bolinhas de Berlim aos berros esganiçados, estancou: “o freguês não quer uma bolinha?” Estava boa, mas faltou a água para desencostar aquele sabor adocicado que restou no céu da boca. Foi então ao bar do veraneante e adquiriu um sumo fresco no regalo da esplanada proporcionada "exclusivamente para clientes e consumidores” do estaminé. Frente à mesita pegajosa de plástico branco, um grande cartaz especava com a foto de um desses grandes da praça, dos que mandam e se alternam no poder, informava algo deste género: “Senhor munícipe, não descure o dever cívico participativo de eleitor... vote certo, vote na competência...”.
O dia estava difícil... a volta a casa não foi melhor do que a ida, na inocência típica de transeunte sofre um atropelo motociclístico em duvidosas circunstâncias de imputável responsabilidade e segue vítima numa ambulância muita jeitosa, de côr verde fluorescente, assistida por duas meninas semi-vestidas de branco, que o tratavam por doente até dar entrada no hospital onde foi registrado como paciente, após inquirida a sua situação de beneficiário do sistema e explicadas as razões do acidente onde causídico, teria também sido o interveniente.
A catástrofe aproximava-se do fim no momento de apelo, como requerente, no serviço de um táxi que o transportasse já como convalescente de retorno ao lar, quando nisto acontece um assalto muito perto à sua frente, onde fugas e tiros de polícia acontecem e acaba arrolado como testemunha do incidente, seja obrigado a comparecer na esquadra o mais breve possível, neste caso em urgente.
Mais para tarde, só para a noite, com uma fome danada e dores inerentes da batida, espalhanço e rebolanço acontecido anteriormente, consegue boleia no mesmo carro-patrulha que dadas as pressas sabe-se lá de quê, confiando nos estimadíssimos mesmos agentes do passado recente matinal, queimando mais vermelhos do que verdes, o levam a casa e garantem cancelamento das penalizações esverdeadas em papel auto-químico altamente rasgável, anulável e extraviável na parte do canhoto, após umas cervejolas frescas entretanto oferecidas, num enquadramento diferente de moldura penal, que mais teve a ver com pena do cidadão do que com despenalização.
No dia seguinte, teve que ir às finanças... na qualidade de contribuinte, para tratar de papelada relativa a um contrato-promessa de compra e venda de um Trabant que, como proponente promitente, apresenta para certificação e formalidades necessárias. Se as coisas correrem bem, passará a outorgante, mas se correrem mal, i.e. uma das partes não cumprir o estipulado, poderá vir a ser litigante e assim...

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Relógios de fachada

Quando pensamos num relógio de fachada, colocado num edifício ou numa torre, logo nos virá à memória o Big Ben em Londres, porventura o mais famoso em todo o mundo.
Em termos artísticos merece a pena observar o que encontramos na Europa central, exemplo do fabuloso relógio astronómico de Praga, na República Checa.
O de figuras rotativas que se encontram na Rathaus (Câmara Municipal) de Munique, na Alemanha.
O relógio de sinos e também astronómico de Székesfehervár, na Hungria, em excelente estado de conservação.
O relógio de figuras circulantes da Universidade de Szeged, também na Hungria.
O relógio misto e duplo (exposto em duas faces) da torre do castelo de Sighişoara na Roménia.

Este último, na Transilvania, está colocado no castelo que pertenceu a Vlad III Drácula (Vlad Ţepeş), referido anteriormente no artigo publicado a 17 de Maio de 2007, sob o nome "Segesvár".

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Silva Porto (8)

Cuíto (ou Kuíto como apeteça a quem não se interessa de como se escreve o que se diz) é exemplo da mais lamentável destruição patrimonial - onde a estupidez política e militar soube arrasar uma cidade quase perfeita - na República Popular de Angola.

Uma avenida de separador central “rasga” esta pequena cidade em duas partes, rematada nos topos por uma rotunda e por um largo.

Numa das partes encontramos escolas, institutos, um mosteiro, edifícios governamentais, um pavilhão, hospital, moradias.

Na outra, o mercado, os bancos, o tribunal, os correios, a residência do governador, a igreja, o hotel, a piscina e muito comércio em lojas e armazéns.

Cuíto foi cidade auto-suficiente, tinha de tudo... cafés, restaurantes, padarias, supermercados, cabeleireiros, drogarias, carpintarias, fábrica de discos, outra de tijolos e telhas, campo de futebol, barragem, produção termo-eléctrica, oficinas, parques infantis, jardins, fontanários, aeroporto.

Na rotunda de entrada uma bomba de combustível, descendo a referida avenida central encontramos outras duas.

Frente ao hotel Girão bem como no Jardim central existiam oficinas completas também com combustível.

O centro é um jardim frente a um largo onde se implantaram em simetria majestosa os palácios do governo e assembleia municipal.

Esse jardim é ladeado pela estação de correios e pela igreja.

Uma pequena ponte, por entre calçada e canteiros facilita num modo artístico a travessia pedonal por cima daqueles tanques forrados a azulejos azuis, de altimetria diferenciada de modo a que à agua se movesse em cascata e se renovasse bombada, onde duas esbeltas e desnudas jovens brancas em bronze se precipitavam ao banho.

A capital do Bié, na província ultramarina portuguesa de Angola, chamava-se Silva Porto e não era nada disto que observamos... exceptuando aquelas duas estátuas de uma beleza unica, eróticas portanto, mas representando a felicidade de um povo que ali chegou a acreditar o paraíso.
Neste artigo publicado, somente a primeira, a quinta, a sétima, a oitava e a décima-primeira imagem são propriedade do autor, captadas em 2004