quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Szilveszter

Búék é uma palavra que se ouve habitualmente nestes dias finais de 2008. Não aparece nos dicionários porque na realidade nem sequer existe, é apenas um abreviado de boldog új évet kívánok (significa “feliz novo ano desejo”) que todos entendem e retribuem com naturalidade (neked is búék). Este tipo de vocábulos (palavras feitas de abreviaturas) têm tanto de comum como de normal na língua húngara, tal como em outros idiomas existem expressões que somente são entendidas por nativos (ex.: “apanhar bonés”, “fazer farinha”, “boca no trombone”).
Neva suavemente em Budapest e com mais intensidade na província, que é na verdade onde a natureza mais se compatibiliza (os assuntos do céu, não os do firmamento, são menos influenciados pela poluição) e se repete sempre idêntica desde o início das suas forças.
Mesmo assim, mesmo reconhecendo que a beleza da primeira precipitação se transforma em lastimosa melancolia e por fim em incómodo, há as surpresas do Inverno, coloridas por vezes, comestíveis por outras.
Em húngaro cogumelo é gomba, óptimo em sopas, grelhado simples ou frito panado, de preferencia com queijo füstölt (fumado).
O Inverno é belo quando se comporta como tal, vindo o frio e o rigor que regula também o mundo animal, reduz drasticamente a quantidade de insectos que aparecem logo com as primeiras flores da Primavera e regula o sono e a fome dos mamíferos selvagens, principalmente dos que hibernam e não tanto dos que fazem túneis nos quintais.
Em Fonyód não se encontram veleiros no porto, somente fora da água que entretanto solidificou à superfície, serena e vagarosamente, agora a reflectir como um espelho perfeito. Cisnes, patos e outros que tais, dos que ficam resistentes e não sabem o Hemisfério Sul, ganham o sossego que gela as suas patas de forma especial para nado. Nesta pequena povoação os restaurantes, lojas e supermercados não abrem porquanto não existem clientes, logo os empregos são essencialmente sazonais, nada acontece e até a frequência dos comboios é menor.
Fora do porto, as praias congelaram na sua forma habitual, a fraca ondulação existiu até ao momento em que as próprias cristas congelaram, assim como a espuma da rebentação junto às margens. O peixe que sobrevive a estas condições de amplitude tão extrema (tendo em conta que a temperatura da água atinge os 24ºC no Verão), sobrevive lá mais para o centro do lago, onde a profundidade média é de 3 metros e em alguns pontos um pouco mais (a quantidade de dias muito frios do Inverno não é bastante para congelar toda a água do Balaton).
Assim termina o Dezembro, com temperaturas perto dos -10ºC por agora e provavelmente durante as próximas semanas. O ano 2009 começará portanto do mesmo modo como termina o 2008 nos termos ditados pela natureza, assim sempre diferentes das doutrinas humanas, que invariávelmente são previsões ou esperanças para melhores dias, oxalá.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Legényfogó

A composição dos biscoitos legényfogó é farinha, açúcar, fermento, ovos, margarina, tejföl (produto lácteo parecido com natas) e cacau em pó somente em metade da amassadura. Com rolo estende-se a massa branca, estende-se também a massa castanha e depois coloca-se uma sobre a outra. Enroladas as camadas, cortam-se fatias que se colocam deitadas em tabuleiro para o forno.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Karácsony

Durante o mês de Dezembro não nevou em Budapeste, mas só hoje, levemente. Não se confunde com chuva nem gente porque esses não batem assim tão levemente, já sabido.
Deixado para a última, que os preços do pinheirito cortado são calculados mediante o comprimento da peça e a relação procura-oferta que é altamente condicionada pelo tempo que resta até ao final do dia de hoje (o preço tem a tendência lógica para aumentar até se aproximar o dia em que valem nada, portanto os momentos imediatamente precedentes a essa hora são uma espécie de sub-prime dos hortos, onde inicia a akció, ou seja os descontos).
Enquanto se experimentam as particularidades de diferentes fornadas de legényfogó (este biscoito não é típico do natal, o seu nome ademais significa qualquer coisa como “caça-noivos”) montam-se as luzinhas, bolas e bombons coloridos e com recheio de marzipán na amostra florestal ao mesmo tempo que se colocam garrafas de pezsgő (espumante) no parapeito das janelas de modo a arrefecer e preparam-se outras iguarias.
O Beigli sim é um bolo típico, uma espécie de torta bem dôce com recheio de creme de sementes de papoila (mák) ou creme de nozes (dió) servido às fatias.
Por outro lado a noite de consoada não existe, que as actividades do Natal na Hungria são sempre diurnas.

Silva Porto (16)

Aquele pequeno murete azul contorna o quarteirão, separa os tímidos canteiros junto à entrada da piscina, faz de vedação ao parque infantil e limita parcialmente o pátio do tribunal, em ruínas. No contexto da reconstrução e ampliação destas instalações para um novo Tribunal/Procuradoria provincial, o murete foi também reparado em seu redor e graciosamente abrangido o próprio parque.
A piscina terá sido um lugar aprazível nos anos setenta, quando havia água canalizada em quantidade e condições que enchessem aquele enorme tanque de azulejos azuis, com filtros e bombas a funcionar normalmente. A torre de saltos e o lugar das pranchas ainda lá está mas os poucos centímetros de água da chuva depositada no fundo é insuficiente para banhos, somente salva a míngua de milhões de mosquitos de uma névoa-enxame feroz. O cheiro da água pútrida e a probabilidade de ser picado centenas de vezes pela temível fémea Anopheles gambiae durante o tempo de tragar uma Cuca, não valiam a visita ao bar do complexo.
Imagem captada na cidade do Kuíto (antiga Silva Porto), capital da província do Bié, Angola em 2004.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Szerelmi történet

No Szerinting existe uma história de amor (szerelmi történet). São dois os personagens principais mas nem sempre aparecem sob a mesma forma. O Lobo (Farkas) desta história é um lobo-bom com muito charme e que orienta os seus interesses sobre a Cinderela (Hamupipőke), uma bela Princesa (Hercegnő) cujo destino é altamente influenciado pela habilitação ergonométrica a um certo vestido vermelho (Vörös ruha). Esse vestido é objecto muito simples, descoberto nos ombros e sustentado apenas em finas alças, o rodado nas pernas é contraste ao justo da cintura e peito resolvido com um longo fecho de correr nas costas. Apesar de ser bastante comprido e somente apropriado para cerimónias, festas ou idas ao teatro, não deixa de emprestar uma imagem bastante sensual a quem o utiliza, porque o tecido é suficientemente fino e macio para se moldar perfeita e voluptuosamente às formas do corpo.
É imperativo ordenar os episódios para que seja entendida a sequência dos actos. Todavia é possível intercalar alguns detalhes e por tal editar outros episódios entre aqueles que já foram escritos, principalmente entre Az alagút sarka e 5 Puttonyos porque bastante tempo os separa:
Episódio 1: A Vörös ruha (O vestido carmim)
Episódio 2: Farkas, Piroska és Hamupipőke (Lobo, Cap. vermelho e Cinderela)
Episódio 3: Az első találkozás (O primeiro encontro)
Episódio 4: Az alagút sarka (A esquina do túnel)
Episódio 5: 5 Puttonyos (5 Cabazes)
A relação entre o Lobo e o Capuchinho vermelho (Piroska) é nenhuma, pois tal como já foi referido este lobo não é dos maus e também porque as vendedoras ambulantes de flores costumam utilizar vestidos tradicionais (da Hungria), do tipo folclórico, onde a cor predominante por coincidência ou propósito é o vermelho. É mero exercício de brincar e paródia imaginar a rapariga das rosas como mulher atraente e de encantos maiores do que apenas o floral. Isso até pode ser verdade em algumas situações, mas nesta história não é.
Por ser verdade que a sedução é uma espécie de jogo, as regras são válidas quando estabelecidas por todos os jogadores ou simplesmente assumidas por quem participa. Assim, pode acontecer que um ou mais jogadores disputem as mesmas peças do jogo, tal como as peças do jogo possam decidir previamente quem é o vencedor. Apesar de diversas peças terem sido disputadas anteriormente pelo mesmo jogador o “xeque-mate” somente foi “dado” à Princesa (Hercegnő).
Na história de amor do Szerinting as “cartadas” são lançadas sempre como trunfos na mão e resultam invariavelmente na felicidade continuada dos dois personagens principais. É desejo muito forte que as razões do coração não alterem essa perspectiva de futuro, por motivos diversos convenientes ao autor, oferecendo ademais a possibilidade de publicar mais episódios. Quanto a outros tipos de razões, das alheias às vontades do coração, principalmente as de natureza incontrolável, inevitável ou sobrenatural, se vierem a ser conhecidas terão de ser mitigadas seguramente com os mesmos trunfos que sempre têm resultado em vitórias, à falta de força que venha a fé.
O resto que recheia os episódios são espaços e lugares, arte ou música que complementa o romance no detalhe, aquilo que faz parte do universo físico da realidade.

A vörös ruha

A reunião de Varsóvia marcou a interrupção dos trabalhos na cidade de Bucareste em finais de 2005, mas o estabelecimento de medidas imediatas para o início de actividades em Budapeste. Era Novembro quando pegou no caderno que dizia Hungria, o segundo destino estratégico antes da República Checa, terceiro e último do plano.
Tinha passado quase uma década desde a última vez que entrara em Magyarország, mais precisamente na República da Hungria (Magyar Köztársaság).
Alojado no magnífico Hotel Nemzeti da Blaha Lujza tér, distraía-se uma grande parte do tempo, gastava a solidão por assim dizer, a descobrir os afazeres dos turistas vizinhos pela transparência das janelas dos quartos e casas de banho, tão próximas umas das outras mas intercaladas por belas estátuas brancas sobre um fundo azul de fachada ortogonal.
O anoitecer trazia aos mesmos espaços representações diferentes: Para alguns apenas o sono vencia o cansaço, enquanto para outros o romantismo de Budapeste tornava oportuno o amor ardente.
De vez em quando jantava no hotel outras vezes fora, muitas delas no Alcatraz onde nunca falhava em pedir a sopa de cebola dentro de um pão desmiolado.
Uma certa vez passeava a ver montras na Király utca, naqueles dias em que o vagar é aliado do tempo, quando descobre o vestido carmíneo da loja Siptár, um motivo de fixação. Se coisa desta natureza é classificável como vício, então seja, porque sempre que calhava a caminho ou lá perto, muitos foram os dias de Dezembro em que esteve ali imóvel frente ao vidro a tentar imaginar uma face diferente para o manequim, uma outra bela que não adormecida e desejou tanto tanto encontrar a Cinderela.
O Natal aconteceu em Lisboa e a passagem de ano no Porto. Regressou a Budapeste em Janeiro.

Hamupipőke, Piroska és a Farkas

Era Janeiro e nevava em Budapeste.
Desde o Hotel Museum da Trefort utca (esquina com a Puskin utca) são apenas três quarteirões de distância até à sopa de cebola.
Entrou no Alcatraz e depositou imediatamente o sobretudo cinzento no guarda-roupa antes de descer as escadas e pedir mesa. Num sábado à noite as reservas eram maiores do que os clientes presentes e apesar desse argumento e após alguma insistência infrutífera abandonou a prisão, subiu e procurou o restaurante mais próximo, uma espécie de pub bávaro mas com menu austríaco do tipo Bécsiszelet vendéglő, coisa de schnitzel para conduto e strudel para sobremesa.
Comeu, pagou e andou mas sentiu o frio em maior dose do que a habitual quando deu conta de não ter o sobretudo, mas somente a ficha metálica com o número prensado do primeiro restaurante.
Uma prisão normalmente é local de pouca sorte, mas o Alcatraz estava animado por música ao vivo e foi precisamente You`re the first, the last, my everything o chamamento afortunado que o levou a adiar a recolha do sobretudo e descer para uma Kilkenny, que é menos amarga que a Guiness e também se pede em pints.
Encostado à barra e ao som do mesmo Barry White deu conta de um isolado par de almas fémeas a terminarem o jantar em mesa ao centro, alheias à sua presença, ao mesmo tempo que uma rapariga vestida assim como um Capuchinho vermelho ou lá o que parecia aquilo, passava por detrás a promover a venda de rosas que transportava em cabaz de vime.
Diz que uma cajadada pode matar até duas coelhas, certo era bastar-lhe uma sempre que viva, encomendou as rosas ao Capuchinho, pré-pagou que nem um Lobo-bom e assistiu regalado à entrega das flores, ajeitando o nó da gravata para salientar alguma compostura ao aceno.
Mal a jovem Capuchinho lhes apontou o doador, retribuiram ambas com sorrisos e não demorou muito para que Just the way you are num ápice o encorajasse a transformar o par em trio, no meio de um full house, apenas uma delas falava inglês e algum francês a mais do húngaro, sentou-se frente à dama que lhe faltava para completar a "sequência".
Passadas umas semanas, essa mesma hercegnő provou diversos tamanhos do vestido de alças, mas foi precisamente o da montra aquele que lhe serviu.

Az első találkozás

Trinta minutos antes da hora combinada já ele havia chegado ao largo junto ao parque de estacionamento da praça Blaha Lujza. Poucos metros de distância o separavam do lugar onde se conheceram e fora ali a última vez que se tinham visto, por cautela de um e embaraço de outro, a falta de ousadia designou o mesmo local para o primeiro encontro, num Domingo às quatro da tarde.
O frio era suportado por debaixo de um sobretudo cinzento, onde a gravata protegia a garganta mas tentava uma compostura séria.
Com relevante atraso ela levantou a suspeita de que não apareceria, talvez tenha desistido, talvez tenha segredos e compromissos impeditivos, pensou.
Caminharam pela Nagy körut, nome pelo qual é conhecida a avenida que de quando em quando exibe nomes diferentes aos quarteirões, enquanto inventavam novos motivos para conversa, ele dá-lhe o braço, ela acompanha.
No Madách Szinház, foi representada Az Operaház Fantomja em Dezembro passado, versão traduzida, melhor do que The Phantom of the Opera dois anos antes em Londres.
Em veloz ritmo trocaram sabedoria e reconheceram-se as almas, quando à entrada do centro comercial na Nyugati Palyaudvar já construíam esperanças sem certezas, estabeleceram-se preferências nos sabores das bolas do gelado e do café que é muito melhor se não misturado o leite, embora leite seja também muito bom, quando frio e achocolatado, assim por diante e novamente ao jantar.
A pé, voltaram à praça Oktogon, subiram o passeio Andrássy para tornearem a estatuária dos reis e heróis, encontrando o espaço romântico do restaurante Robinson. Sempre falando ele mais do que ela, escusando-se por isso.
O primeiro passo, um momento audaz foi o primeiro beijo na esplanada sobre o lago de água quente, testemunhados por aves te todas as espécies, depois do jantar.
Sorrisos e graça foram bastantes para as pegádas marcadas em estreia sobre a superfície branca de flocos da Hősök tere, isto é, praça dos Heróis na direcção das escadarias da Földalatti, onde se abraçaram e sentido o calor contrastante das faces e o encosto das mãos sobre os relevos do corpo, ganharam certezas.
Conheceram-se apenas no dia anterior, mas tudo era tão breve que sentiam ambos amizade de longa data.
Acompanhou-a por fim até à praça Batthyány, onde o seu estimado Honda estava parqueado, numa escuridão de noite já confirmada pelos projectores que iluminam a fachada do parlamento da Hungria, Országház, do outro lado do rio, mesmo em frente.
Beijaram-se novamente, nevava junto aos lábios.
Não por acaso ela reteve o seu cachecol, dormiu com ele, parece que cheirava bem, que a paixão deixa-se alimentar por pormenores destes.
A noite para ambos, mesmo à distância, foi passada em claro.

Az alagút sarka

Conheceram-se no serão de 21 de Janeiro de 2006 em Budapest. Apaixonaram-se em menos de vinte e quatro horas, no primeiro encontro, um Domingo à tarde e em escassos quinze dias já trocavam mensagens a dizer Szeretlek. Tudo estava tão claro para ele como confuso para ela, porque enquanto o primeiro contava com um passado rico de aventuras e compromissos, as ambições da segunda eram modestas à falta de conhecer diferente.
A euforia de amor primário durou o mais que foi possível e com a intensidade somente comum nos sonhos e fantasias até ao contacto telefónico que anunciava o encerramento da sua missão na Hungria. Aconteceu ali, na esquina do túnel diagonal que liga a estação subterrânea ferroviária do HEV às escadas rolantes do Metro, em Batthyány tér numa Segunda-feira de Fevereiro.
Embora ela não compreendesse ainda a língua portuguesa, um sexto sentido funcionou enquanto observava atentamente os movimentos trémulos nos lábios durante a breve chamada. O seu coração estava aflito, decidiu chorar, devagar e encostada ao ombro dele. A felicidade parecia afinal tão efémera, tão frágil, demasiadamente finita.
Enquanto mantinha um semblante carregado de preocupação, os pensamentos dele eram outros, um conjunto de sentimentos bem organizados permitiu-lhe “desenhar” em poucos segundos o mapa das suas prioridades na vida:
- Sossega, eu voltarei a Budapest... em menos de quinze dias.
- Verdade?
- Julgas-me capaz de perder a La Bohème na Operaház?
- Amas-me?
- Não sei outra coisa.

5 Puttonyos

Olhou para o relógio de números vermelhos infalíveis e luminosos que a electricidade informava de já passarem duas horas e vinte e oito minutos de um sábado de Novembro, quando decide adormecer. A noite de sexta-feira tornou-se longa por alguma inquietação ou porventura cúmulo de lazer: Caminhou desde a Szabadság tér até às estátuas de Erkel e Liszt, compositores homónimos, que adornam as escadarias da entrada principal da Operaház na Andrássy út nº 20 a faltarem 30 minutos para o início de umas Bodas de Fígaro de Mozart. O edifício, majestoso tal como qualquer "casa de ópera" digna de uma capital europeia (salvo a excepção ao S. Carlos que a lograda competição ao Scala, tem de infeliz, inequivocamente a localização), tem um estilo de arquitectura neorenascentista com elementos de barroco, construído entre 1875 e 1884 por responsabilidade de Miklós Ybl. A representação dessa ópera (Libretto de Lorenzo da Ponte baseada na obra de Pierre-Augustin de Beaumarchais) esteve um pouco para além das expectativas, que Cherubino ofuscou de talento e voz os nubentes Fígaro e Susanna. Porém o fascínio do serão terá sido indubitavelmente a mulher de vestido carmim sentada na 13ª fila da plateia, portadora do título de ingresso com número e letra imediatamente posterior ao seu. A sua sensualidade emprestava mais brilho ao dourado da câmara, que o corpo nu dava forma ao hábito num balancear cúmplice a capturar os olhares de coxia e um sorriso jovial que abraçava as invejosas inveteradas das pausas entre actos, ao sabor de Tokaji 5 puttonyos. Depois, sem mais impudicícia conivente, jantaram juntos num dos espaços do costume, invariavelmente kacsamell (peito de pato), vício que já vem dos tempos em que a cozinha francesa do "Chez-Paris" se tornou a requintada salvação ao enfado dos Tagines e afins.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Silva Porto (15)

Quem nunca combateu nada entende da guerra por mais que estude o assunto. Portanto o tema dos sintomas traumáticos que afectam psicologicamente alguns militares que participaram em guerras é assunto delicado, porque não é totalmente compreendido pelos restantes, por mais estudiosos que sejam e também porque provavelmente nem todos os pacientes obedecem a padrões de comportamento idênticos.
Tudo tem a ver com a morte, com os objectos, ruídos, imagens e idéias que de algum modo se relacionam com a dita.
O que é certo é que depois de voltar de Angola nunca deixou de ter receio de certas coisas que normalmente são inofensivas, ou seja, na Europa não deviam fazer sentido. Uma delas é evitar percorrer caminhos em terreiros, pisar bermas de estradas ou circular por fora dos passeios e fica mais nervoso quando entra numa mata ou num baldio. Observa escrupulosamente os marcos quilométricos junto às estradas e espera sempre que algum deles possa informar “zona minada”, uma imagem da morte.
Imagem captada junto aos encontros da estrutura metálica que substitui a anterior ponte sobre o rio Kukema, na estrada que liga o Kuíto (antiga Silva Porto) ao Huambo, Angola em 2004.

Silva Porto (14)

Exactamente na esquina oposta ao edifício Gabiconta fica o pavilhão gimno-desportivo do Kuíto. Aquilo parece não ter quase “ponta por onde se pegar” se calha de ser tentada alguma reparação.

O mais curioso é que apesar de nem sequer ter cobertura e não faltarem também orifícios por tudo quanto é sítio, de vez em quando são organizados ali alguns espectáculos.

Imagem capturada em 2004 no Kuíto (antiga Silva Porto), capital da província do Bié, Angola.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Limites de aspiração ou o contentamento das pretensões

Sim há objectos que pertencem aos sonhos, há os que pertencem à habituação e há os irrelevantes à estima. Há assim os inalienáveis, os que representam algo e os dispensáveis, sejam imóveis, móveis ou miudezas.
Se por um lado as propriedades imobiliárias são realmente grandes razões do coração, as possessões rolantes têm por vezes direito a grande dedicação, enquanto que no imenso mundo das coisas pequenas exibem-se maiores afectos principalmente nas colecções, rochas ou metais raros.
Um Trabant 601 Hycomat é um objecto com rodas da década de 80. O seu motor a dois tempos funciona com irregularidade, faz muito ruído e cheira mal. A carroçaria, feita de pasta de algodão, resíduos diversos e resina (Duroplast) está convenientemente pintada de um azul claro celestial que combina com o magnífico amarelo dos estofos. O funcionamento do sistema de embraiagem é opcional, pode funcionar normalmente por pedal ou então através do manípulo das mudanças, o condutor define a sua preferência. Um dia, talvez se torne objecto de colecção reconhecido.
Uma BMW K1100 LT é um motociclo dos anos 90, portanto um objecto com rodas, só duas. Será um tanto ao quanto abusivo considerar este modelo como um “clássico” mas certamente é reconhecido como uma referência no género, um padrão de qualidade, durabilidade e fiabilidade. Ou seja a K1100 LT é “a mota”. O rádio incorporado, o isqueiro, o manómetro com informação sobre o depósito de combustível, as tomadas eléctricas, o indicador da velocidade engrenada na caixa, bem como o pára-brisas basculante são alguns pormenores de uma máquina equipada com tecnologia tipicamente alemã, como é o caso do ABS Bosch e da transmissão por veio. Um dia, talvez se torne objecto de admiração maior.
Um BMW 325Ci Cabrio é coisa recente, bela de ver, quase perfeita no ser. São quase 200 Cv de potência regulados por uma caixa de velocidades de funcionamento automático com opção desportiva ou manual, um exterior de cor púrpura e um interior beige. O poderoso sistema de som harman/kardon é integrado em consola onde o painel de instrumentos e funções (tradicionalmente básico) está virado para o condutor. Apesar de ter muita “pinta”, nunca será objecto de colecção e a admiração que colhe é demasiado fútil e efémera.
Arthur Schopenhauer diz em Aforismos para a Sabedoria de Vida:
“É difícil, senão impossível, determinar os limites dos nossos desejos razoáveis em relação à posse. Pois o con­tentamento de cada pessoa, a esse respeito, não repousa numa quantidade absoluta, mas meramente relativa, a sa­ber, na relação entre as suas pretensões e a sua posse. Por isso, esta última, considerada nela mesma, é tão vazia de sen­tido quanto o numerador de uma fração sem denomina­dor. Um homem que nunca alimentou a aspiração a cer­tos bens, não sente de modo algum a sua falta e está com­pletamente satisfeito sem eles; enquanto um outro, que possui cem vezes mais do que o primeiro, sente-se infe­liz, porque lhe falta uma só coisa à qual aspira.”

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Estereograma (3)

Não se trata de uma dupla de Mothman dos avistamentos sobrenaturais de Charleston, tampouco são fadas Sininho do mundo fabuloso de Peter Pan. Não fossem apenas essas inquestionáveis figuras humanóides e seriam seguramente classificados como insectos da ordem Lepidoptera, agentes polinizadores da maior importância logo após findado o processo quase taumatológico da metamorfose que, indubitavelmente, acontece dentro de uma crisálida.
Ao fixar o olhar num ponto de “infinito” é possível descobrir as imagens tridimensionais deste estereograma.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quer pouco: terás tudo. Quer nada: serás livre.

e “Não só quem nos odeia ou nos inveja nos limita e oprime; quem nos ama não menos nos limita.” é Ricardo Reis em Odes, expressando a sua angústia e sofrimento na eterna busca da felicidade, numa apatia a tudo o que é externo ao ser e sempre acreditado de que o homem sábio vive de acordo com as leis racionais da natureza e é apenas uma peça na grande ordem e propósito do universo.
Pertencendo à mesma Geração d’Orpheu, Mário de Sá Carneiro, ao estilo modernista e perdido num “labirinto de si próprio” que aliás ditou o seu fim trágico, escreveu Como eu não possuo (em Dispersão, a sua primeira obra de poesia):
Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.
Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da côr que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!
Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo p'ra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lôdo.
Não sou amigo de ninguém.
P'ra o ser forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
Embora com menor interesse em termos literários, mas não deixando de ser um ensinamento sobre a constância de nos equivocarmos repetidamente na avaliação das coisas e das pessoas que nos rodeiam e consequentemente fazermos julgamentos que nos levam à solidão por fustração da posse, é oportuno citar um parágrafo da obra Citadelle publicada em 1948, de Antoine de Saint Exupery:
"Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. Por eu amar a Deus, meto-me a pé pela estrada fora, coxeando penosamente para o levar aos outros homens. E não reduzo o meu Deus à escravatura. E sou alimentado com o que ele dá a outros. Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca."
Imagens apresentadas: Noite estrelada de Vincent van Gogh (1889), exposto no Museu de Arte Moderna (New York) e La Venus del espejo de Diego Velázquez (1483) exposto no National Gallery (London).

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Zichy Mihály

Mihály Von Zichy nasceu a 15 de Outubro de 1827 em Zala, no Sudoeste da Hungria mas aos dezassete anos de idade encontrava-se em Viena junto de Ferdinand Georg Waldmüller, um grande mestre da pintura romântica austríaca.
Entre diversas obras do mesmo género, tornou-se bastante fomoso o retrato oficial de Lajos Batthyány (primeiro ministro do governo revolucionário húngaro de 1849) que é de sua autoria.
A representação do salvamento a um náufrago, uma das primeiras obras realizadas por Zichy é bastante interessante em termos de equilíbrio de cor e movimento, apesar do seu sentido obviamente religioso, onde o drama é substituído pela esperança e coisas da fé cristã. Esta imagem apresenta o jovem, o idoso, a mãe, o bebé, a esposa e o marido, o solteiro e o casto, é bastante completa.
Também se tornaram conhecidas muitas pinturas a óleo e alguns dos seus trabalhos a lápis ou aguarelas, principalmente as que foram produzidas enquanto pintor ao serviço da corte russa. Em S. Petersburgo representou recepções diplomáticas, ocasiões comemorativas, cenas de teatro e concertos, bailes e cerimónias, visitas oficiais a diversos locais, reuniões e outras actividades da família real, também motivos militares e a própria coroação do Czar Aleksander II, retratos diversos das imperatrizes Fiodorovna e Maria Alexandrovna e outros familiares da casa.
A pintura de 1878 A rombolás géniuszának diadala (O triunfo do génio da destruição), preparada para apresentação na Exposição de Paris é uma obra magnífica, com um conjunto explícito de mensagens e significados de subjectiva interpretação (na altura as autoridades francesas acabaram por excluir a exibição desta pintura na exposição por considerarem uma interpretação demasiadamente antimilitarista e com afectação política).
A forma humana é realçada em quase todas as suas obras, sendo que alguns desenhos são apenas belos estudos das formas do corpo e não propriamente produções artísticas.
O trabalho de ilustração foi uma das tarefas onde o autor, excluídos os anos de serviço na Rússia e temporadas em Paris, dedicou mais tempo de actividade (a contar pela quantidade produzida de desenhos) participando em diversas edições conhecidas da literatura húngara. A título de exemplo, são da sua autoria as ilustrações de Az ember tragédiája (A tragédia do homem) de Imre Madách em 1887 e a maioria das baladas de János Arány escritas entre 1894 e 1898.
Todavia são os desenhos eróticos de Zichy aqueles que mais despertam a atenção de todos.
O autor explora as formas humanas numa experimentação extremamente despudorada com a representação explícita de actividades sexuais, coisa que para a época seria um tanto ao quanto arrojado, pelo que provavelmente a maioria destas obras nunca atingiram o estatuto de publicáveis.
Embora seja desconhecida a quantidade real de desenhos existentes neste género, a totalidade daqueles que se reconhecem pertencentes ao mesmo autor revelam uma tendência para a representação de relacionamentos e actividades heterossexuais, seja por cópula, masturbação, felação ou cunnilingus.
Alguns desenhos parecem mostrar que um dos intervenientes é o próprio artista, quando a figura masculina é apresentada a segurar utensílios de pintura ou similares.
Ou simplesmente o espaço onde se dedica a oferecer prazer ao elemento feminino é o escritório de um artista ou desenhador ilustrador, identificando seguramente em fantasia o autor com o caso (embora não sejam identificadas traços faciais de ambos os elementos de modo a estabelecer relações efectivas entre objectos e protagonistas dos motivos desenhados).
O que afinal temos como certo é o facto de estas imagens hoje terem valor museológico, são apreciadas por todas as idades como peças de valor artístico e pretendem no mesmo âmbito ser prova de que o ser humano se repete desde a sua existência.
A actualidade dos desenhos eróticos é explicada pela intemporalidade das múltiplas expressões físicas do amor que o ser humano sempre foi capaz de inventar.
Na primavera deste ano aconteceu em Budapest uma exposição (na sala das mostras temporárias da Magyar Nemzeti Galéria) das obras de Mihály Zichy pertencentes ao museu Hermitage de S. Petersburgo. Pois afinal aquilo eram fotocópias ou fotografias das obras e não os originais, coisa indecente (por parte de quem emprestou e também de quem aceitou emprestado) porque é obviamente desinteressante apreciar arte desse modo. Qualquer um pode aceder ao site do museu russo por internet e vizualizar tudo no computador, copiar e imprimir sem ter que pagar bilhete de visita.
Mihály Zichy morreu em S. Petersburgo a 28 de Fevereiro de 1906.