domingo, 4 de maio de 2008

Silva Porto (11)

De tanto chorar eram as dores de cabeça que lhe emprestavam um olhar doentio de olheiras carregadas. Nada parecia ter sentido, aquela nova vida era como um pesadelo, uma punição. E porque vomitava constantemente as refeições de que se enojava, sorte afinal no lugar de diarreias, sentia-se enfermo.
Sentado num banco de jardim, onde os canteiros não tinham flores e o lago não tinha água, seguia atentamente as crianças que brincavam, do outro lado da ponte, com carrinhos feitos de latas de salsichas e caricas.
Mais à frente duas outras crianças recolhiam o gasóleo que escorria junto à bomba de abastecimento. Ajoelhadas junto às pôças, raspavam com latas de sardinhas as pequenas quantidades que depois transvasavam para garrafas de vidro.
O abastecimento de combustível, embora incerto (não justificava a sensação de escassez que os distribuidores gostavam de alimentar, existiam bastantes opções concorrentes e os preços por litro eram irrisórios) satisfazia as necessidades de modo compatível com a procura.
Logo no primeiro dia constatou que naquela cidade a maioria da população era infantil e somente após uma semana deu conta de não existirem cães ou gatos, arrependeu-se de ter perguntado porquê. Com o fim da guerra passou a haver milho, mandioca, batata rena, tomate, arroz, açucar, óleo...
... e leite-moça (leite condensado) para ser misturado com água fervida.
Imagens captadas em 2004 na cidade do Kuíto (antiga Silva Porto), província do Bié, Angola.

2 comentários:

sombra e luz disse...

quem está tão doente?... de quem é este indefinido recomeço após guerra?... ohh fiquei contente que as tantas crianças já bebem leite-moça... e que o fazem com água fervida...
Brisas atlanticas e rosas de maio...

james stuart disse...

Infelizmente... "com o fim da guerra passou a haver milho, mandioca... e leite-moça..." mas nem todos (a maioria) têm acesso a alguns desses bens. Raras são as crianças que para além do leite materno, voltam a provar leite na vida.