domingo, 13 de abril de 2008

Porto sentido

Alda era uma bolacha maria, nascida e criada na Ribeira, em tudo e nada contrastava com o murcão do seu marido, Arnaldo, um finguelinhas. Filhos de ambos e também de anteriores amigagens, uma salgalhada de amores passados e difíceis de ordenar, a canalha ruidosa aos pinchos no páteo da vila era indiferente às constantes trocas de injúrias e lapadas que invariávelmente a mãe distribuía no pai, justificada pela sua incomparável sostrice e irreparável falta de jeito para a profissão de picheleiro que afirmava orgulhosamente desempenhar, significando a ausência da correspondente contribuição financeira para as necessidades do lar. Arnaldo era apenas um trolha incerto, especialista em serviços assapateirados, simplesmente um trengo.

Para desanuviar as consumições domésticas, passava os serões no café Nasoni, ali à beira da Sé, uma enxovia de borrachos mas que à meia-hora servia tripas para fora ou então umas francesinhas de categoria, as melhores do Porto e Gaia.

Amigo jurado e companheiro mirolha de presenças no Dragão, Armando era um eterno embufado por razões idênticas a Arnaldo e nem sequer o facto de este ser môina e apresentar corpo em casa, não passava de um azeiteiro fácil de calcar por Alzira, companheira desde sempre, caga-tacos mas fiúza.

Arnaldo e Armando competiam no calote aos finos do Nasoni a par de se entreterem a mandar priscas e sameiras para as sardinheiras de Amândia, a taberneira, quarentona vistosa de um louro em toutiço pintado quase até à raiz, saia curta e meias com foguetes interrompidos a verniz.

Certa vez, por via do álcool ou de tanto ressentimento derivado de fartura às lôstras e pisaduras caseiras, estes dois touços acederam de inventar assaltos perfeitos, mudar de vida para melhor, julgavam. Amândia ouviu-lhes os planos, mas era mulher de confiança sem risco de chibar, que lhe interessava a capacidade dos clientes para inverter o fiado, não importava como.

Decidiram em grande, uma moradia da foz, junto à praça do Império, que Armando sabia, por acidente profissional ter alarme avariado e riquezas bastantes para subtrair.

O Fiat Uno preto de Armando estacionou na bouça das traseiras, saltaram o muro, calcaram as hidrângeas do jardim e introduziram-se pela janela pequenina aberta de um quarto de banho.

Tiveram tempo para inclusivé se confortarem com uma refeição por conta dos proprietários ausentes, um estrugido de cebola com ciclistas na sertã e guarnecido com penca cozida à falta de carne. Mas ainda havia na cozinha meia dúzia de tigelinhas e uns quantos magnórios do quintal, que serviram de sobremesa rematada por um cimbalino tirado em máquina eléctrica para o Arnaldo, e um pingo para o Armando.

Para além de uma volta de ouro e um aguça em prata, o melhor e mais fino que entrou nas sacas de serapilheira deste par de artistas foi um chuço de marca italiana, uns carapins ainda embalados, alguns casacos de cabedal sacados às cruzetas dos roupeiros, dois pares de coturnos de marca, e uma caixa pesada com sabe-se lá o quê dentro e que não deu para abrir por causa de um aloquete.

A fuga, se a vagareza do crime pode conter esta definição, foi atribulada, o doberman que impávido assistiu à entrada, estancava agora de olhar fixo frente à janela, espumando pelas beiças e preparando o ataque para o qual foi treinado.

Arnaldo e Armando começaram por tentar distrair o bicho com o arremesso de catotas, à distância obviamente, depois levando mais a sério o assunto, o animal recebeu uma saraivada de objectos diversos, um apanhador, um alguidar e uma bacia voaram seguidos de uma meia-dúzia de bijús sêcos e por fim um testo, enviesado, parecia um disco, certeiro nas vistas do animal que de imediato tombou, que se notava o focinho assim como que ourado e impedido de ferrar, obra de Arnaldo.

A dupla bufava de alívio e enquanto o canídeo se dispunha a espilrar a saliva entalada no gasganete e tendo a sua atenção desviada da janelita da entrada que agora serviria de saída, ambos se escapuliram tão fácilmente como entraram, excepto as sacas que trilharam e num esforço de repuxo que esbotenou o aro, rasgou uma delas, precisamente a que continha a volta de ouro que se perdeu escorregada para o bueiro do quintal.

Num ápice levado pelo mêdo e contornado de má sorte, Arnaldo e Armando encerraram o golpe perfeito com um abandono acelerado e desvairado, descendo a Avenida da Boavista pelas faixas centrais agora renovadas, contornando o Castelo do Queijo e estacionando por fim tão perto do local do crime mas sem se aperceberem.

As sacas ficaram na mala do Fiat Uno, excepto a caixa do aloquete, que foi aberta na esplanada do café da Praia da Luz, num amanhecer acompanhado de bolinhos de bacalhau e dois finos. A caixa não era de Pandora, mas uma espécie de chaveiro onde o acesso a imensos armazéns de Vila Nova de Gaia estava assim garantido, códigos de alarme e tudo.

Arnaldo e Armando sorriram de imaginar a fortuna e a sorte do seu achado, não tendo de imediato em conta de que caves de vinhos do Porto não se assaltam com sacas de serapilheira.

7 comentários:

Patti disse...

Bela história que acompanhou as fotos.

Ou será que foram as fotos que acompanharam a historia?

Anónimo disse...

James Stuart muito gira a história .. até parece um tripeiro (na Hungria) e fotos obviamente lindíssimas.
Não acredito muito que o Armando e o Arnaldo tenham ido à Praia da Luz, andaram mais um bocadinho e foram à Adega Bom Dia na Cantareira, lá sim é que há uns bons bolinhos de bacalhau e um bom espadal a acompanhar.
Gostei muito fez-me sorrir
Beijinho

james stuart disse...

Prometi há uns tempos escrever sobre o Porto.

É verdade que a história, pura ficção onde os nomes (Alda, Arnaldo, Armando, Alzira e Amândia) também são mera coincidência, acompanhou parcialmente as fotos.

Pois também sou capaz de concordar que a dupla de "meliantes" provavelmente arrebentaria o aloquete na cantareira e nunca na praia da luz.

As imagens do Porto foram todas captadas em 2006, excepto a do canídeo.

Este artigo, especialmente por causa do vocabulário utilizado, levou bastante tempo a escrever, num estilo incomum para o "Szerinting" também me fez sorrir quando o editei.

Anónimo disse...

Adorei a sua descrição sobre a gente da Ribeira do Porto.Sensacional.
Um abraço da Sara.

sombra e luz disse...

James... valeu a pena esperar pelo post dedicado ao Porto...;) também sorri... e sabe, até podia continuar a história... tão bem que estão apanhados os personagens no enredo da sua ficção... estilo incomum mas não inusitado no "Szerinting".
((àparte alguns ligeiros anacronismos e leves sobreposições de registo da língua pode dizer-se que merece com toda a justiça a medalha de cortiça com que agora e aqui o condecoro, James Stuart nobre e valeroso cavaleiro das mil léguas e cem mil letras... esta muy inbicta cidade também é a tua cidade e quando tu cá voltares... raios, habemos d'ir (o teu fan club tripeiro em peso!...) beber um fino à praia da luz ou à cantareira, tanto dá, que no-lo oferece o próprio Chico Fininho...))

james stuart disse...

Calhava... uma "meia francesinha" ali no "rei" delas, em Ramalde. Um "príncipe" ou dois, depende... sim depende se os da PSP estiverem em "operação stop" debaixo da ponte, logo a seguir aos tanques.

Anónimo disse...

Meu caro James Stuart:

Obrigado pelo artigo sobre Nova Sintra (Angola). Sou de lá e escrevi um livro em que uma das personagens é o famoso tenenete húngaro Lazlo Magyar. Se quiser saber mais, contacte-me para o e-mail: jeancautin@netmadeira.com.
Um abraço

João Coutinho