Era de madrugada… acordou com os primeiros raios de sol que desenhavam umas riscas mais brancas na parede da cabeceira do leito, efeito de lâminas inclinadas das portadas verdes de alumínio que protegem o acesso à varanda. Acendeu a televisão em busca das notícias vespertinas. Entendeu pelas primeiras palavras do locutor... que era um “caro tele-espectador”.
Arranjou-se, saiu com preparos para um dia de praia. Ao dirigir-se à garagem ainda leu um papel afixado no átrio do edifício que rezava: “Aos Exmos. condóminos - Avisam-se todos os moradores do edifício de que...”. Enquanto lia cruzou por detrás um vulto que disse “bom dia vizinho!”. Seguiu.
A caminho liga o auto-rádio e aparecem umas vozes que tratam de um jogo de uma mala e etc, apelando ao “caro ouvinte” que contacte o programa para "tentar a sua sorte de concorrente na resposta certa...". No telemóvel aparecia uma mensagem gravada: “estimado cliente, o saldo do seu cartão...”. Parou frente a uma caixa multibanco e recarregou o dito. Após três tentativas, uma menina informa que "para ser um participante, tem que responder a um questionário prévio...” Desistiu.
No preciso momento de desconexão da comunicação telefónica, um carro patrulha da PSP encosta rente ao retrovisor, onde um agente, a esforço baixa o vidro manualmente enquanto cómodamente e simultâneamente em frente vê premido o botão para arriar a homóloga janela, eléctrica. Feitas as apresentações e entregues os cumprimentos, é informado gentilmente para não movimentar a viatura e dar acesso aos documentos. “E não sei quê, e tal... o senhor estacionou o automóvel na passagem de peões, precisamente em arruamento onde é proibido parar ou estacionar...”. Sem diâmetro para escapar desta ainda engoliu os seguintes apelidos “infractor ao código da estrada”... “incumpridor da lei”. Aceitou, que remédio, levou o talão verde enquanto lhe informaram que o prazo para pagamento do montante era de quinze dias, mais do que isso seria "considerado devedor". No ir e não ir, avançou por ultrapassagem os agentes da autoridade, sem se aperceber cruzando um semáforo vermelho. Assim, escuta uma sirene e uma chiadeira de pneus que logo bloqueiam no seu pára-choques. Passou a “automobilista de tudo o mais... e irresponsável”, “abusador de delito”, chegou mesmo a ouvir ser constituído “arguido” por ofensa grave a não sei quê, onde foi ordenado como “detido” que passaria num ápice a “réu”... mas valeu-lhe o colega do agente que perfilava esse monólogo incendiado, levando o assunto a menores instâncias, com solução dada pela emissão de outro talão verde e um mero teste do balão, para verificar se “o condutor compreende um eventual delito conjunto de alcoólico”. Nada, felizmente, pese o facto de ter sido convidado a abandonar a viatura por incorporar uma situação consequente de “faltoso muito grave”. Após longa prosa lá foi, cuidando de nada inventar que não fosse verdade enquanto inocente que falhou por distracção e nada mais que outros humanos não saibam. Decidiu-se pelo melhor, estacionar o veículo e passar a peão para encontrar um autocarro que o dia não estava para mais. O bilhete comprado ao motorista dizia em pequenas letrinhas as condições do utente, pelo que na qualidade de passageiro cumpriu, obliterando.
Uma hora mais tarde e de toalha às costas caminhou pelo areal e instalou-se. A bandeirola estava verde junto à armação de madeira que continha avisos ao banhista que sendo utilizador da zona concessionada tem regras a cumprir segundo decretos estes e aqueles, e tal, mas com vantagens de ser socorrido em caso de ser detectado como náufrago. Momentos depois passa a menina das bolinhas de Berlim aos berros esganiçados, estancou: “o freguês não quer uma bolinha?” Estava boa, mas faltou a água para desencostar aquele sabor adocicado que restou no céu da boca. Foi então ao bar do veraneante e adquiriu um sumo fresco no regalo da esplanada proporcionada "exclusivamente para clientes e consumidores” do estaminé. Frente à mesita pegajosa de plástico branco, um grande cartaz especava com a foto de um desses grandes da praça, dos que mandam e se alternam no poder, informava algo deste género: “Senhor munícipe, não descure o dever cívico participativo de eleitor... vote certo, vote na competência...”.
O dia estava difícil... a volta a casa não foi melhor do que a ida, na inocência típica de transeunte sofre um atropelo motociclístico em duvidosas circunstâncias de imputável responsabilidade e segue vítima numa ambulância muita jeitosa, de côr verde fluorescente, assistida por duas meninas semi-vestidas de branco, que o tratavam por doente até dar entrada no hospital onde foi registrado como paciente, após inquirida a sua situação de beneficiário do sistema e explicadas as razões do acidente onde causídico, teria também sido o interveniente.
A catástrofe aproximava-se do fim no momento de apelo, como requerente, no serviço de um táxi que o transportasse já como convalescente de retorno ao lar, quando nisto acontece um assalto muito perto à sua frente, onde fugas e tiros de polícia acontecem e acaba arrolado como testemunha do incidente, seja obrigado a comparecer na esquadra o mais breve possível, neste caso em urgente.
Mais para tarde, só para a noite, com uma fome danada e dores inerentes da batida, espalhanço e rebolanço acontecido anteriormente, consegue boleia no mesmo carro-patrulha que dadas as pressas sabe-se lá de quê, confiando nos estimadíssimos mesmos agentes do passado recente matinal, queimando mais vermelhos do que verdes, o levam a casa e garantem cancelamento das penalizações esverdeadas em papel auto-químico altamente rasgável, anulável e extraviável na parte do canhoto, após umas cervejolas frescas entretanto oferecidas, num enquadramento diferente de moldura penal, que mais teve a ver com pena do cidadão do que com despenalização.
No dia seguinte, teve que ir às finanças... na qualidade de contribuinte, para tratar de papelada relativa a um contrato-promessa de compra e venda de um Trabant que, como proponente promitente, apresenta para certificação e formalidades necessárias. Se as coisas correrem bem, passará a outorgante, mas se correrem mal, i.e. uma das partes não cumprir o estipulado, poderá vir a ser litigante e assim...
4 comentários:
... papelada relativa a um contrato-promessa de compra e venda de um Trabbie que, como PROPONENTE, apresenta para certificação e formalidades necessárias. Se as coisas correrem bem, passará a OUTORGANTE; se correrem mal ou se uma das PARTES não cumprir o estipulado, poderá vir a ser LITIGANTE.
Uma escala rapidíssima nesta sua casa e não só... just to say helloooo!
Bom resto de fim-de-semana!
No meio desta floresta densa de apelidos, não é nada fácil uma pessoa orientar-se. É por isso que anda tudo desnorteado,a começar pelos políticos que dizem, depois hesitam, voltam atrás, recuam, voltam a avançar... e vemos os panoramas cada vez mais confusos: Ota ou Alcabideche? TGV, sim ou não, por onde?
Um abraço
Sempre Jovens
Bee, espero do seu agrado, o artigo foi devidamente complementado com o seu parágrafo...
Um texto afinal, sempre disposto a cambiar...
James, obrigada pelo «aditamento»!
Reparei só agora que, com a pressa, em vez de PROPONENTE PROMITENTE, escrevi apenas PROPONENTE. Tratando-se de um contrato-promessa, teria sido mais correcto.
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