O dia começava cedo, bem cedo. Ainda o sol se espreguiçava da dormência da noite, já Adélia revolvia a vida por dentro e por fora num frenesim de força e vontade que contagiava tudo e todos. Era um tempo difícil. Trabalhava longe, em casa das senhoras ricas, às vezes levava também a filha pela mão e percorria ruas e vielas como quem passa de um mundo para o outro. Para trás já tinha ficado a janta pronta, as camas feitas, a roupa estendida e outra de molho em sabonária para ser lavada à noitinha. Naquele passo certo e corrido, Maria João, a menina, era levada quase a reboque. - Porque não vamos de camioneta mãe? - Perguntava ela, sentindo ao fim de poucos metros o cansaço nas pernas franzinas. Adélia ás vezes sentia-se angustiada por sujeitar a filha àquele esforço, mas o que podia fazer? Não conseguia esconder-lhe a realidade e embora sonhasse com um futuro melhor, era preciso ensinar Maria João a enfrentar qualquer adversidade sem grandes lamúrias ou lamentações. – Para irmos de camioneta gastamos quatro escudos por dia e é preciso poupar filha! Vais ver que chegamos num instante e depois vais ter todo o dia para descansar. Os quatro anos de Maria João, faziam com que não pensasse noutra verdade para além daquela que a mãe lhe dizia, agarrava-se a ela com a mesma força com que segurava a sua mão e juntas atravessavam a vida. De todas, a mais bonita era a casa da D. Mimi. Ficava num 8º andar de um edifício tão alto que quase arranhava o céu. Tudo brilhava naquele luxuoso apartamento; os móveis de madeira exótica, o chão encerado e lustroso com carpetes bonitas, cortinados e reposteiros de tecidos nobres e cores sóbrias, pratas e porcelanas dispostas numa decoração requintada. Na cozinha, espaçosa e arejada, os tachos e panelas luziam pendurados e pairava no ar um aroma doce que se misturava depois com o cheirinho do café que Adélia fazia para os senhores, mal chegava. Quando as meninas se levantavam, a mesa da sala já estava majestosamente pronta para o pequeno almoço. A Senhora já tinha dado as ordens para a refeição seguinte que deveria ser servida à uma hora em ponto, isto depois de Adélia se desfazer em agradecimentos e desculpas por ter tido a permissão, mais uma vez, de levar a filha consigo, assegurando que ela não perturbaria nem os seus afazeres e muito menos a vivência dos donos da casa. Maria João interiorizava com atenção todas as conversas, jeitos e gestos, sentada a um canto da cozinha, num banco de madeira pintada. Nervosamente, ou porque a imponente figura da D. Mimi a intimidasse, ou porque assumia a postura formal e servil da mãe, ela esticava a saia de xadrez pregueada para que lhe cobrisse os joelhos, tal qual lhe recomendava sempre o pai. Depois era o reboliço. Era a dona da casa que tocava na sala o sininho, dando sinal para que Adélia comparecesse sem demoras. Era o Senhor General, que Maria João apenas conhecia pelo som austero da voz, que dizia: “Tenha modos Nônô!” ou “Fifi, a menina ainda não lavou os dentes?”. Era a menina Nônô, a mais pequenina, que vinha à cozinha pedir à Adélia que lavasse o vestido da boneca ou lhe fizesse o totó e olhava curiosa para a menina, dizendo-lhe simplesmente “Olá”. Ao fim de algum tempo, a calma e o silêncio iam regressando ao ritmo da porta da casa que se abria e fechava até todos terem saído. Ficavam depois só as duas, mãe e filha, naquele que era para Maria João um palácio e para Adélia uma casa de muito trabalho. Depois de saborearem um delicioso café, feito com as borras já coadas do café anterior, Adélia começava a labuta; limpava, arrumava, lavava, esfregava, polia, estendia, passava e cozinhava com a mestria do saber fazer que dez dos seus vinte anos de vida, lhe haviam ensinado enquanto servia em casa de senhores. Maria João, sempre de volta da mãe, aprendia com ela os gestos mágicos que transformam as casas em portos seguros, asseados e deliciosamente confortáveis. Só havia um sítio onde ela se perdia como criança; o quarto das meninas. Tudo era tão lindo! A colcha rosa fofinha que cobria a cama pintada de côr branco-pérola . O abajur do candeeiro que era afinal o guarda-sol da boneca que agarrada a ele pendia do tecto. A caixinha de musica com a bailarina em pontas que ela fazia rodar dando-lhe corda, atrevidamente, assim que a mãe se distraía. E as bonecas, tantas bonecas! Grandes e pequenas, como ela nunca vira senão ali. Adélia deixava-a sempre mexer nelas, tocar-lhe nos cabelos, ajeitar-lhes os vestidos. Sabia que existia uma infância roubada no olhar da filha e que aquele era um dos poucos momentos que permitia o seu reencontro. Apesar de saber que a filha tinha todo o cuidado do mundo, ela repetia sempre o mesmo aviso, com a firmeza das coisas inquestionáveis: - Volta depois a pôr a boneca no sítio e não estragues nada! Voltavam depois à cozinha e era hora de preparar o almoço. Pouco depois regressavam todos e também o reboliço e o som do sininho, com a Adélia a colocar o avental branco bordado para se apresentar prontamente à chamada. Ah! E no banquinho de madeira, lá ficava novamente a Maria João sentada, à espera que se fizesse novamente silêncio. Almoçavam na cozinha o delicioso repasto das sobras da refeição dos senhores que eram devolvidas nas travessas, ás quais se juntava por vezes um pouco mais, que de tanta fartura, havia ficado no tacho. À hora da sesta, Adélia estendia uma saca de serapilheira limpinha no chão da marquise. Maria João adormecia ainda a sentir o beijo e a carícia da mãe, a ouvir o tilintar dos pratos e copos que ela lavava e a pensar na manhã, cheia de coisas boas que tinha vivido. “Coisas boas...” foi gentilmente cedido por Maria João Martins, a autora (publicado originalmente no blogue Pequenos detalhes). A imagem apresentada é sua propriedade.
quinta-feira, 26 de março de 2009
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