quinta-feira, 26 de março de 2009

A Espuma dos dias

É a época da lampreia.
Em Entre-os-Rios deu-se o confronto surrealista com uma lampreia bem nutrida, que emergia ou flutuava ou se movia, de gordos pedaços escuros em arroz ensopado num molho escuro e espesso, enfiado em grande terrina fumegante, movediço, exalando um odor acidulado de revirar o estômago.
Aquela coisa viscosa que ao ser servida parecia rastejar e querer evadir-se dos pratos fazia recordar em L’écume des jours, de Boris Vian, a cena descrita com sadismo por Nicolas a Colin, da captura sangrenta de uma enguia que, saindo pela torneira do lavabo, ia todos os dias gulosamente sugar du dentifrice à l'ananas. Para a apanhar, Nicolas colocara um ananás em vez do tubo de pasta. Sôfrega, a enguia abocanhou-o, cravou-lhe os dentes e já não conseguiu recuar dentro do cano. Nicolas decapitou-a com uma lâmina de barbear, abriu a torneira e o resto saiu; fez então com ela um pâté. Enquanto ouvia os pormenores do relato do seu cozinheiro, Colin deliciava-se com a iguaria: - Redonne-moi du pâté. J'espère qu'elle ait une nombreuse famille dans le tuyau.
Engenheiro mecânico, inventor, escritor, poeta, actor, guionista e cineasta de curtas-metragens, cantor, letrista, trompetista, pensador, inconformista, iconoclasta, patafísico e anti-militarista, Boris Vian era um apaixonado pelo jazz, manipulando as palavras como fazia com os sons: a sua escrita, lâmina afiada, é uma profusão de símbolos, metáforas e figuras, sincopada e ritmada, uma sucessão de anagramas, trocadilhos, neologismos, jogos fonéticos, variações e improvisações.
Apaixonado também pela cultura do absurdo, jogos intelectuais e lúdicos surrealistas e escrita automática, lança os leitores para o mundo angustiante da desesperança, numa viagem ao insólito em que nem sequer importa definir a fronteira entre realidade e imaginário, possível e impossível, viagem desconfortável, amarga e simultaneamente hilariante, em que, desesperadamente apaixonados ou amorfos, humanos e objectos, animados estes de vontade própria e agressividade, disputam o mesmo espaço: paredes e tecto que se fecham como um diafragma, enclausuram, asfixiam e esmagam (Le Mur, de Sartre, transmite essa sensação de claustrofobia, de obstáculo invisível mas intransponível), uma pedra que brota do chão para fazer tropeçar quem passa, máquinas numa linha de montagem que esquartejam os operários ou lhes arrancam pedaços, braços e pernas, uma avenida em que só uma em cada duas árvores dá sombra, um raio de Sol que encontra um obstáculo e cliva, a côr que se desprende de um lenço e se vai pousar no beiral de uma janela, as ratazanas de hirtos bigodes negros e magnífico pelo sedoso, que brincam lá em casa mas só no corredor e que o cozinheiro alimenta bem mas sem as deixar engordar demasiado...
Artigo adaptado de um original escrito por Bee Amacke. As imagens apresentadas não são propriedade do autor.

2 comentários:

Dobra disse...

A única comida que me enoja. Cobra no prato, Deus me livre! Que saudades de Entre-os-Rios, de quando era pequena e ia às termas tratar da sinusite. O meu pai obrigava-me a beber a água sulfurosa e eu agoniava. Restam as boas memórias das brincadeiras no Hotel das Termas, o piano na sala grande e os passeios pela zona! Tudo menos a lampreia que o meu pai comia como se melhor petisco não existisse. Credo!!!

Bee disse...

Já não me sinto tão só (e quase excomungada) na repugnância que tal bicheza me provoca. Eu juraria que ela ainda mexia!...

Com a albufeira da barragem de Crestuma, o cenário modificou-se e vale a pena voltar a Entre-os-Rios para matar essas saudades. Depois, fazer a estrada sinuosa e verdejante (no tempo das mimosas que aí vem, por exemplo) até à barragen de Carrapatelo, a montante.