Era dia de semana, azul e luminoso, e passeávamos pela cidade de meu coração, a cidade que amo acima de todas, porque lá fala-se a minha língua e a minha língua é a minha Pátria, como Pessoa afirmou. O caos é ele próprio uma forma de vida e cidade alguma consegue mimar-nos como Lisboa, com a luz de Lisboa. A primeira luz que vi, a primeira cor do mundo foi a cor de Lisboa e a última cor que verei, será a de Lisboa também?
Cidade branca, cidade cinzenta, cidade azul, pintada de cores e humores, caprichosa e voluntariosa, paciente e terna. Como línguas, as ruas alongam-se até ao rio. Há carros, sempre carros e camionetas e comboios e eléctricos. Outrora amarelos, mas ainda da Carris. Há pobres e ricos, há pretos e brancos, há louros e morenos, há mães e putas, há viúvas e órfãos. Há pedintes, nacionais e estrangeiros, anunciando o advento da multiculturalidade também nesta “triste forma de vida” e arrumadores, andrajosos e miseráveis, quase todos, convictos no desempenho da sua função e sempre sequiosos da recompensa, obtida mais por receio do que merecimento.
A vida flui calma no stress mediterrânico de quem tem muito que fazer, embora os horários mais não sejam do que ténues pontos de referência para quem quer ver as notícias das oito ou das dez ou as incontáveis telenovelas de gosto duvidoso, cujo efeito terapêutico provoca uma catarse, colectiva e individual, em domésticas e executivas, ecoando no ar como um sonoro orgasmo simultâneo.
Assim é a minha cidade. Magnífica, como só ela sabe ser, e todos os dias ela cresce, a cidade, e se deixa descobrir, brindando-nos com as inúmeras vistas e as perspectivas sempre renovadas, ângulos novos reveladores da alma da urbe. Eternamente, o Miradouro de Santa Luzia. Sempre Alfama, sempre o Castelo e a Sé, mas também as zonas ribeirinhas onde paira amiúde a maresia, a maresia do rio. Cheira-me repentinamente a sardinha assada e a manjerico de Santo António de Lisboa, e a cidade torna-se ainda mais colorida, mais feérica.
Agrada-me a Lisboa dos roteiros turísticos, a Lisboa brejeira e varina, de braço dado com a mais sofisticada e elegante, e esqueço os subúrbios quase imorais de tanta fealdade e, agora que se me foi o cheiro da sardinha, regressa o fumo semi-opaco das castanhas assadas e sim, agora sim, agora ecoam os versos de Cesário Verde que, também ele, cantou Lisboa, o Tejo e a maresia, e vejo o bulício espesso de que falava Nas nossas ruas, ao anoitecer... Extracto do texto "Lux" editado no blogue "Geração rasca", por Leonor Barros em 14 de Junho de 2007
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