quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Abraço à Baía

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Conta a «Lenda do Lago» que...

N'aquela tarde calma, fora a pesca abundante.

Sant’António, do seu nicho, assiste vigilante

À faina. Os pescadores largam já d’amarra

E, como o mar é manso, lá vão de proa à barra

Alegremente em fila, o porto demandando.

O leme vai na orça, velozes vão passando

Na linha da «carreira», em frente da capela.

O Santo vai contando, um por um, vela por vela.

O sol é posto já. Traiçoeiro a refrescar,

O vento aflige o Santo e atormenta o mar.

Toldou-se o céu também, logo a terra escureceu

E, no regaço, o Santo Jesus adormeceu.

Já nas ondas envergam os novelos d’espuma

Mas, na conta das velas, inda falta uma!

Nos lábios d’António, trémulos d’amargura,

Alguma praga ao mar entre as preces se mistura.

Um ponto branco, ao sul, lá longe entre a procela,

Traz rumo aproado, à alvura da capela.

O bom do Santo ao ver essa asa de gaivota

Que tão audaz procura a linha da derrota,

Empalidece e treme, temendo-lhe o destino.

Não se atreve porém a acordar o seu Menino.

E murmura: «Jesus, Senhor! A vaga é tão alta

E aquela vela é a mais pequena que me falta!»

Enquanto dura a luta entre o mar e a vela,

António nota já não ser deserta a capela.

Uma pobre mulher, nos degraus ajoelhada,

Cinge contra o seio uma cabecita dourada.

No seu ardente olhar e nos olhos da criança,

O ponto branco brilha, como um farol d’esperança

E o pescador afoito aproa sempre a vela

Ao vulto da mulher, à brancura da capela.

O mar redobra a fúria, é um leão rugindo

E tranquilo Jesus, no regaço, vai dormindo.

Mas avistando o pano, roto já p’la rajada,

A cabecita d’ouro exclama apavorada:

«Ó mãe? Ó minha mãe?

É o meu pai, que lá vem?!»

N’isto, o Menino acorda e, mui mal humorado,

O aio santo increpa, de sobrolho carregado:

«O que foi isto, António? Quem foi que se atreveu?!»

O Santo aponta a medo a vela, o mar, o céu.

Nos olhos da mulher, onde a vela é agravada,

Uma lágrima... uma pérola pendurada.

Desvairado ao vê-la, implora Sant’António:

«Senhor... fazei bonança... o mar é um demónio!»

Jesus, serenamente, do nicho então desceu,

Com uma mãozita em concha a pérola colheu.

O seu rosado braço, enérgico, balança

E às ondas infernais a humilde jóia lança.

Depois, sorriu ao Santo com divino afago

E no mar, defronte da capela, fez-se um lago .

Um Pescador de São Martinho do Porto

... mas as origens da «Pérola do Atlântico» serão outras e remontam a muitos milhares de anos. Por fenómenos naturais e de erosão, a Baía de S. Martinho do Porto, situada na Costa de Prata, a cerca de 130 km a Norte de Lisboa, será o que resta da Lagoa de Alfeizerão, uma das três grandes lagoas que formavam um vasto estuário.

De clima ameno e águas tranquilas, a Concha Azul, como é conhecida pela sua forma singular e perfeita, é actualmente uma estância balnear, porto de recreio e de recolha de algas e limos.

Dois morros alinhados quase fecham a concha. Entre eles, uma passagem – a barra - de apenas 250 m, resultante de um abatimento, há milénios, da linha das montanhas. Na parte Sul da baía, entre o rio Tornada e a barra, fica Salir do Porto (nome de influência espanhola), a povoação que se fixou nessa encosta e a praia fluvial; a Norte e contornando o resto da baía, São Martinho do Porto.

Antigo e principal porto de pesca, escoamento e transporte de produtos agrícolas, madeiras e mercadorias da região, transacções comerciais com grandes mercadores predominantemente da Galiza e importante estaleiro naval – terão começado a ser aí fabricadas, nos séc. XV e XVI, naus e caravelas que integraram as expedições dos «Descobrimentos Portugueses» e também a de Alcácer-Quibir, mandadas construir as desta pelo rei D. Sebastião – São Martinho do Porto vê as suas actividades seriamente afectadas, já no séc. XVIII, pelo progressivo assoreamento da baía, por acção das areias arrastadas pela ribeira de Alfeizerão que ali desaguava.

Desse estaleiro naval, saíram grandes fragatas bem como o primeiro navio a vapor. Porém, a gradual diminuição da profundidade das águas foi agravando as condições de navegabilidade da baía e acabou por impossibilitar o acesso de navios de alto bordo que, por esse motivo, foram desviados para o porto da Nazaré. O tráfego ficou assim restrito aos saveiros (transporte de sal) e outras embarcações de envergadura e tonelagem muito menores.

Golpe fatal, quer para a construção naval, que já se ressentia do esgotamento das madeiras provenientes das matas de Leiria, o «Pinhal do Rei» (rei D. Dinis), quer para o escoamento e transporte de mercadorias (absorvidos estes também pela entrada em funcionamento em 1887 da Linha férrea do Oeste) e as transacções comerciais daí decorrentes, quer ainda para as actividades piscatórias, principal fonte de riqueza da vila. O declínio do porto leva ao seu encerramento em 1923, ficando quase reduzido à carga e descarga de limos e algas. Esta alga, a corriola, abunda na baía e a sua apanha submarina, artesanal e em apneia, mantém-se. Depois de seca e transformada em pó, em fábricas da Figueira da Foz e do Barreiro, é exportada para o Japão e utilizada nas indústrias farmacêutica e cosmética.

Se a linha férrea e também a ligação do ramal de estradas de Alfeizerão à Estrada Real de Lisboa e Porto levaram à desactivação do porto, em compensação, trouxeram a S. Martinho do Porto uma nova fonte de riqueza: o turismo. As condições naturais excepcionais da Concha Azul, as águas calmas, o areal de cerca de 3,5 km ligando um morro ao outro, a temperatura amena durante todo o ano, a beleza e o relevo da mancha verde envolvente, fazem dela destino regular de fim-de-semana e férias, fixam gerações de famílias e atraem, nos meses de Julho e Agosto, milhares de turistas.

O ramo hoteleiro, a restauração, o comércio, a indústria e a construção expandem-se. Contudo, as infra-estruturas rapidamente se revelam insuficentes ou incapazes de responder ao afluxo. Os efeitos nocivos fazem-se sentir: por um lado, a construção desenfreada atenta contra as belezas naturais, arquitectónicas e patrimonais de uma vila genuína, estância balnear com um toque de Belle Epoque, onde ainda se encontram alguns exemplares de Barroco, Arte Nova e a típica «casa portuguesa»; por outro, os níveis de poluição das águas (descarga a montante da foz do rio Tornada de efluentes de suinicultura e outras indústrias) começam a desviar um número significativo de veraneantes para outras praias da região com melhores condições e oferta. Também a corrriola, sempre tão abundante, começa a desaparecer.

Os filhos de São Martinho, como se denominam os residentes e amigos da Concha Azul, inquietam-se, lutam pela bandeira azul e unem-se no sentido de, junto das entidades locais, acelerarem o arranque ou a execução de projectos já em curso e das medidas necessárias à despoluição das águas, ao desassoreamento da baía, à requalificação paisagística, à protecção e preservação patrimoniais.

Assim nasce a «Associação Verão de São Martinho», que lança, a partir de 1999 e todos os anos, num dia de Agosto, a iniciativa do «Abraço à Baía» como forma de protesto e sensibilização.

Consiste o «Abraço à Baía» num cordão humano, rente à linha de água, ao longo dos 3500 metros de areal que vão do cais de S. Martinho a Salir. Envergando uma t-shirt branca, criada para o efeito e oferecida a quem queira, o cordão forma-se rapidamente; às 16 horas em ponto, um veleiro emite um sinal sonoro e todos se dão as mãos.

Coincidiu o último «Abraço à Baía» com o único dia de nevoeiro cerrrado de Agosto de 2008.

De cores e humores variáveis próprios de cada estação, que vão desde o reflexo de prata no mar ao pôr-do-Sol de fogo, do céu límpido e brisa morna à imobilidade do nevoeiro denso depois de uns dias mais quentes, S. Martinho do Porto também conhece dias tempestuosos, de nuvens negras e chuvas torrenciais desabando sobre um mar de chumbo, cenário digno de uma das telas sombrias de William Turner.

Integrada num plano mais alargado e de grande envergadura, são já notórios os resultados da acção das «Águas do Oeste», entidade responsável pelos vários projectos de requalificação ambiental da região, pelo processo de despoluição, da entrada em funcionamento da ETAR (Estação de Tratamento de Águas Residuais) de S. Martinho e de um emissário que permite a descarga das águas residuais em mar aberto e não mais nas da baía. A melhoria da qualidade biológica das águas é significativa: a prová-lo, o reaparecimento da corriola.

Abraço à Baía é um trabalho excelente de Bee Amacke e gentilmente oferecido ao Szerinting. Todas as imagens apresentadas pertencem à autora, excepto a primeira.

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