Luísa subia e descia a mesma calçada de uma Lisboa que a tornava mais e mais cansada, mas não como a da poesia no Teatro do Mundo, simplesmente esgotada e farta da redundante mediocridade de um povo que a deixou construir. A sua vida, por assim dizer, tornou-se numa rotina de hábitos e missões, costumes e obrigações, de uma tolerância demasiado impávida ou simples falta de coragem, chamemos comodismo.
Numa manhã débil de Janeiro, daquelas sem alvorada ou somente disfarçada por uma chuva que desaba depois num repentino mas óbvio momento, saltou Luísa do quentinho com maior vontade de regular os ponteiros do relógio de modo a iludir o tempo ou as distâncias que o medem, mas não, seguiu nos afazeres da rotina, ensinou afectivamente a quem tinha de ensinar sobre aquilo que lhe disseram ter que ser a verdade factual ou por vezes suposta e nada de interessante aconteceu, nada apareceu como novo ou sem aviso do tipo, digamos, prévio. As horas passaram com a mesma indiferença que a ausência tem pela espera e fez-se noite.
Na companhia do seu outro eu, aquele que se compromete a existir em caixas de correio electrónicas e afins, deixa-se anestesiar por pensamentos e leituras, caracterizando por palavras as análises que faz a formas geométricas e movimentos contínuos por simples prazer ou simpatia, descobre a curiosidade de sentir Budapeste.
O taxi que apanhou Luísa no Terminal 2B do aeroporto Ferihegy era preto e igual a todos os que pertencem à única companhia autorizada a transportar passageiros desde essa praça. Durante todo o percurso somente o silêncio total e absoluto fez memória porque tanto o motorista como a cliente não verbalizavam um idioma comum, o destino havia sido indicado por escrito.
A língua Magyar é de facto muito única, a quantidade enorme de vogais torna-a fácil de ler embora fossem poucas as palavras que Luísa entendia. Perto do hotel existe uma Gyógyszertár, pela montra percebeu tratar-se de uma farmácia. Numa esquina observou estacionado um carro da Rendőrség, pela pintura percebeu ser da polícia. O hotel New York Palace estava completo, apenas sorte foi ter sido destinado a Luísa um quarto com janela na fachada frontal, virada para a Nagy Körút. A relação entre o edifício e a cidade de Nova Iorque é nenhuma, pois nem o arquitecto era americano, tampouco essa cidade tem edifícios tão belos. O tempo voava entre check-outs e chek-ins e às quatro da tarde, após um banho quente e aromático rematado com toalha bordada e um Pöttyös óriás, a noite já estava instalada numa capital que se comportava igualmente, como se dia se tratasse. Três dias, duas noites era o programa, embora a verdade significasse duas metades “queimadas” entre a chegada e a partida que as agências não relevam nem revelam mas de facto só pode ser um óbvio como óbvias são as contingências das distâncias e trâmites legais ou acordados.
O porteiro abriu a porta e responde “szívesen” ao “thank you” que posteriormente passou a “köszönöm”, Luísa entrou no primeiro eléctrico que parou, um número 4, desconhecendo o sistema de tarifas e controlo, simplesmente ao acaso e por curiosidade primária subiu, ajustou a saia púrpura e naturalmente sentou-se. O eléctrico manteve-se estático e de portas abertas durante uns cinco minutos ou mais até uma voz de altifalante provocar um êxodo total. Os mesmos olhares, tão sisudos e imóveis como o próprio eléctrico estavam agora na paragem, alguns fixados em Luísa que se mantinha sentada, mas só, dentro da carruagem. “Algo se passou, alguma coisa importante disseram ao microfone porque todos estão lá fora... em Roma sê romano, logo em Budapeste faz como vires fazer”, terá pensado e "o mais prudente seja abandonar também". Neste entretanto de indecisão, um leve toque no vidro e um sorriso do lado de fora... “The tram is stopped because of... some kind of problem… perhaps an accident in the track”. O jovem continuou prestável e cortês, auxiliou Luísa a descer por uma mão quente já sem luva. Acertaram no idioma, que a outra opção seria o alemão, menos prático para ela mas indiferente para ele, num diálogo suficientemente extenso para as devidas apresentações terminarem num convite, Kávé és sütemény numa cukrászda.
László expressava-se num inglês fluído e com um sotaque mínimo, apenas incapaz de pronunciar correctamente o W, que sempre dizia V. Nos primeiros momentos a coisa era irritante principalmente quando o “vére” aparecia no lugar de “where”, mas depois passou a ser engraçado e até motivo de graçolas, onde Luísa repetia o seu sotaque propositadamente sem que László desse conta.
Na outra mão ainda coberta por luva, o jovem transportava um dvd, Anything Goes, o musical. Obviamente Luísa aceitou o convite. László arqueou o cotovêlo e iniciou a caminhada. Luísa enrubesceu mas entregou a mão no seu braço e seguiram juntos. I’ve got you under my skin era a composição de Cole Porter ditada pelo piano do Lukács à chegada, mas László fez questão de segredar ao ouvido do músico e de seguida surge Bossa-Nova numa melodia de António Carlos Jobim, Luíza. O vislumbre da paixão enchia um coração devolvido de lembrança ou simplesmente uma nova esperança fez seus olhos brilhar e a pulsação saltitar... por um amador, aprendiz do seu amor... e desejou tanto um beijo. Juntos visitaram o Szépművészeti Múzeum, um museu riquíssimo onde se encontram expostas peças de pintores e escultores de toda a Europa, pouca quantidade é certo, mas mais do que em todos os museus de Portugal, juntos. A exibição extraordinária de El Greco foi uma boa oportunidade também e por fim a iluminação da Praça dos Heróis emprestava magia ou poderes acrescidos ao Arcanjo Gabriel na sua tarefa de proteger com mais empenho os Magyarok, desde o topo da coluna ao centro. László seduzia pela oportunidade e destreza de seus comentários e movimentos, um espécime masculino raro. História, literatura, poesia, pintura, música, cinema... eram motivo de conversa e domínio, diálogo nunca interrompido sequer para perceberem que as suas mãos já agarravam como se eternamente fossem par.
Caminharam até à Szent István basilika, de facto enorme e bela, mas não a igreja mais bela que alguma vez Luísa vira, faltavam-lhe os azulejos. Lá dentro sentiu-se novamente perto de Deus, aproveitou para pedir protecção e perdão por pecados, para já os do pensamento ou desejo. O perfume doce na brisa que o Danúbio transportava excitava os sentidos e a imaginação para palavras mais belas, percorreram a margem de Pest até ao Nemzeti Színház, o teatro nacional. O frio e a estatuária do jardim contíguo resultaram em abraço, terno e macio. O jantar aconteceu no barco Spoon, com vista para o palácio real e a manhã apareceu com o encerramento da discoteca Buddha Beach, assim grande como o Lux, mas num armazem parecido com os das docas de Lisboa. Luísa regressou ao hotel onde descansou até ser noite novamente, o seu cansaço era diferente agora, parcialmente físico mas fortemente emocional. Junto ao aparador, um ramo de rosas frescas devolveu o sorriso a Luísa e logo uma expressão facial indefinida de curiosidade estupefacta, um cartão dizia Szeretlek e um número de telefone.
Luísa não voltou a ver László mas sentiu Budapest na sua essência, romântica, tal qual imaginava. A sua história não chegou a ser de amor porque simplesmente preferiu desconhecer um final arrebatador.
László procurou por Luísa, três vezes em Lisboa e outros milhares no mundo virtual, mas nada de Luísa... fosse outro o seu verdadeiro nome.
Hétvége Budapesten (Fim de semana em Budapeste) é dedicado à autora do Blogue “A dobra do grito”.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
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1 comentário:
Obrigada, James. Amei.
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